segunda-feira, 24 de junho de 2013

Contos do Novo Tempo - Ônix



O universo de Ônix em expansão! Aqui você pode ter uma prévia da coleção de contos que apresentam ou aprofundam o universo do pirata Pedra-Negra. 

O primeiro é o Conto do Rola-Pança e o segundo é o Inesperado. Divirta-se!


OBSERVAÇÃO: Há probleminhas de configuração - conflito entre o blog e o Texto importado do word que gera seleção de partes do texto, aleatoriamente e alguns caracteres perdidos que na janela de postagem ficam invisíveis-, mas nada que  impeça a leitura :) para quem é aventureiro.


***

ROLA-PANÇA
Imagine o futuro. Mas, imagine o futuro como o passado. Ou melhor; imagine um futuro no qual a tecnologia moderna foi abandonada por ter se tornado tão perigosa a ponto de quase ter destruído a humanidade. Para sobreviver, os remanescentes resolveram viver uma vida mais simples, inspirados na antiga era medieval.

Para que as desavenças do passado não fossem herdadas pelas novas gerações, toda a história da humanidade, até então, deveria ser esquecida. E assim foi.

O passado foi enterrado, juntamente com os vestígios da era tecnológica e uma nova era medieval floresceu. As lâmpadas foram substituídas velas. Os telefones por cartas, os carros por cavalos e os aviões por navios. Não demorou, os piratas começaram a surgir.  

Neste futuro, neo-medieval, um garoto foi levado até as raras relíquias do passado esquecido, que nada mais eram do que livros e filmes, preservadas por aqueles que conheciam a verdade oculta. Havia um aparelho que se alimentava de energia do sol e, através dele, o tal garoto pôde se deslumbrar com muitas aventuras. E, por acreditar que todas elas realmente aconteceram e que todos aqueles personagens realizaram todos aqueles feitos maravilhosos, ele acreditou que era possível realizar qualquer coisa, se houvesse bastante determinação. E nele havia muita. Assim, inspirado em heróis do velho tempo, ele cresceu, se tornando o pirata Ônix Pedra Negra, para viver a própria aventura...
***
Capítulo I - No chão

Rola-Pança voltava para a casa pensando em seu antigo capitão. O vento frio subia pela rua estreita, enquanto o imenso homem descia. Passava a mão sobre os enormes bigodes castanho-claros, quase num tom de laranja.
O ano era 524 do Novo tempo.
Quando Rola-Pança chegou em casa e colocou a mão na porta, soube, de imediato, ter alguém lá dentro. Alguém não convidado. Uma ameaça. Ficou aliviado por sua amada estar com as crianças numa feira anual, com o avô em outro reino.
 O imenso homem entrou, tirou o chapéu e acendeu um charuto. Só fumava quando passava alguns dias sozinho, uma vez por ano, para se lembrar dos velhos tempos. Ainda era madrugada e apenas uma lamparina iluminava o local.
– Venha. Sente-se à luz – ele falou, bastante calmo.
– Tenho algumas perguntas – uma voz feminina falou, resoluta.           
– Certamente – comentou Pança. Não tentou enxergar a mulher nas sombras. Não queria demonstrar qualquer sinal de medo. Sentou-se numa imensa poltrona. Chupou algum tanto de fumaça e o soprou ao ar. 
– Preciso saber onde está o pirata Ônix-Pedra Negra, outrora seu capitão – disse a voz vinda das sombras.
– Raros são aqueles que possuem esta informação nos dias de hoje – Rola Pança falou, após outra baforada de fumaça.
– Você a possui?
– Me referia ao fato de eu ter sido um marujo de Pedra-Negra – Rola-Pança riu. – Quanto à localização de meu antigo capitão, não hesitarei em revelar que ele está, neste momento, na Taverna do Coelho Caolho.
– Ah! Ônix Pedra-Negra não tem a lealdade de seus antigos parceiros de crime, não é mesmo? – a voz provocou. – Já matei muitos homens em minha jornada e é bem possível que Pedra-Negra seja só mais um a morrer.
– Moça. Ônix Pedra-Negra pode ser qualquer coisa, menos “só mais um” – Pança riu. – Sobre lealdade, não posso pelos outros. Quanto a mim, sou um dos mais leais e, ao lhe informar a localização Ônix, acredito estar colaborando com ele. Não acredito mais em coincidências. A acabo de encontrar, não faz nem uma hora, meu antigo capitão e, ao chegar em casa, encontro alguém que quer encontrá-lo. E, tenho de confessar, pelo que vi da situação dele, você precisa encontrá-lo tanto quanto ele precisa ser encontrado.
– Sabe quem sou?
– Uma ferramenta da vida – Rola-Pança falou.
– Dada sua colaboração, não me custa perguntar: há algo sobre o Pirata Ônix Pedra-Negra que eu deva saber antes de encontrá-lo?
– O que eu teria a contar sobre o pirata Ônix Pedra-Negra? Nada – Rola pança falou. – Mas posso lhe contar sobre mim e o que aprendi com ele. Tudo o que eu disser sobre Ônix Pedra-Negra é, na verdade, sobre mim... sobre como eu o via... e vejo, já que, para mim, ele será um eterno amigo. Noutras palavras, o que tenho a dizer sobre ele é o que ele fez por mim.
 ***
Gostaria de começar, jurando de pé junto, ter sido Ônix Pedra-negra quem me deu o nome de Rola-Pança. Em geral é ele quem escolhe o nome de guerra de seus marujos. Mas, no meu caso, não é verdade. Não foi ele quem me deu este nome. Foi ele, no entanto, quem me fez ter orgulho de ser chamado assim.
Antes de conhecer o pirata Ônix Pedra-Negra, eu era um ninguém, não importava o nome pelo qual fosse chamado. E, talvez por saber que ele poderia me ajudar, o odiei no primeiro instante em que coloquei os olhos nele. É algo da alma; ele me explicou depois. Nossa alma sente o que uma pessoa significará para nós, se dermos chances disso acontecer. Senti, na alma, o quanto que ele poderia mudar minha vida. Mas eu não queria mudar, tenho de confessar. Era mais fácil deixar a imundice continuar me cobrindo, enquanto permanecia caído no chão de uma taverna suja, culpando o mundo por nunca ter me dado uma chance.

Quando Ônix Pedra-Negra entrou naquela taverna, era o ano 521 deste Novo Tempo. Três anos atrás. Não sabia quem ele era e nem teria me dado ao trabalho de perguntar, se ele não tivesse me chutado, enquanto passava por mim, que, admito, bloqueava o caminho, caído ao chão. Ele pediu desculpas, depois de olhar em meus olhos e sorrir. Aquilo me deixou puto da vida, mesmo sem imaginar o motivo. Me lembro de ter perguntado, com bastante raiva:
– Quem você pensa que é para me chutar assim?
– De que adianta, para você, meu camarada, saber quem eu sou, se não sabe quem você mesmo é? A resposta dele era uma pergunta, praticamente sussurrada, depois de se aproximar e se abaixar bem perto de mim.
– Eu sou um furúnculo na bunda da sociedade! respondi com minha mais profunda filosofia da época; mesmo sem saber, naquele momento, o que era filosofia. Não devia satisfação a ninguém, mas não podia perder aquela chance de tirar o pirata de sua postura de sabichão, tacando, na cara dele, as minhas verdades, há tanto tempo entaladas na garganta. Minha fúria deixava minhas palavras frias e duras: – Sou um cara gentil com as mulheres, mas não sou nada bonito, sou enorme e gordo! Nenhuma mulher me ama e jamais amará! Sei construir coisas como ninguém! Mas, não sei ler nem escrever e nunca confiaram a mim um trabalho que eu faria de olhos fechados e de maneira muito mais inteligente do que os letrados, presos nas idéias dos outros. Minhas invenções sempre assustaram as mentes acostumadas a não ousar. Nunca tive uma família, sempre fui sozinho, rumando de reino a reino para me apaixonar por uma donzela, que nunca iria me querer... porta batida na minha cara. Louco para expor minhas idéias, de aparelhos que tornariam a vida muito mais agradável para todos... portas batidas na minha cara. Passei a me alimentar de lixo e comia tanto, com medo de não achar mais no momento seguinte, que me tornei este balofo, tão gordo que mal tem forças pra se levantar! Então, não me venha me dizer que não sei quem sou! Sou um acabado que só tem a raiva como amiga!
– Você está redondamente enganado, meu amigo! foi o que ele respondeu, olhando para minha barriga avantajada. Aquele puto sem mãe de uma figa podre! Eu estava prestes a rosnar, quando ele continuou, dizendo: – Sua raiva é prova de que você não sabe quem é. Sua raiva é por nunca terem permitido que você soubesse. Sua raiva é por ter desistido. O caminho mais fácil é o caminho da perdição. Tomou este caminho. Você, no entanto, precisa se encontrar. Repito: este é o caminho mais fácil. É claro que é difícil suportar o fracasso, mas, muito mais difícil é sustentar a vitória. Se você tivesse lutado para conquistar seu espaço, teria de continuar lutando para mantê-lo. Desistiu em algum lugar e tomou a direção que o trouxe até aqui. Sua raiva não é sua amiga. É um monstro marinho que lhe devora aos poucos. Você gostaria de se livrar dela, mas não tem coragem de se soltar da âncora na qual a sociedade lhe amarrou. Foi marrado por outros sim, mas andou na prancha e pulou, por livre vontade. Poderia ter lutado mais. Podia ter lutado até o fim de suas forças.
– Foi o que fiz! – rosnei.
– Não. Guardou um pouco de força sim, que agora usa para xingar e apontar culpados.     
Ele falava olhando em meus olhos e tinha falado como realmente se importasse. Não me lembro de alguém ter feito isso antes. Ele me olhava como igual. Alguém que apenas  fez escolhas diferentes das dele, apenas isso. Acho que ele percebeu que eu não ia mais gritar e me perguntou:
– Quer descobrir quem você é? Quer saber até onde consegue ir? Estou recrutando marujos e lhe darei uma chance de mostrar o que pode construir.
– Quer que eu construa equipamentos para suas atividades? - perguntei.
– Me referia à uma nova vida para você – ele respondeu, rindo. – Mas, construir equipamentos e armas para mim, pode ser parte desta vida, certamente. Em breve poderei pagar por isso. O que me diz? Quer ser mais do que um furúnculo na bunda da sociedade? Pois, isso, eles podem esconder debaixo de um pano bem costurado. Vamos atingí-los onde eles sentem de verdade: em seus colares, braceletes, anéis... tudo o que for de ouro. Não se surpreenda, meu amigo, pois seriam capazes de suportar algum desconforto nos fundilhos, mas não suportariam em ser privados de ostentar a riqueza com a qual se identificam. Nossa sociedade também não sabe quem ela é. Vamos ajudá-la a se olhar no espelho sem procurar por um brilho que não seja o de seus olhos!
             
Ele ofertou sua mão e gostaria de dizer que a segurei e me levantei. Mas mudar não é fácil. Ele podia ter vontade, mas apenas isso não bastava. E quanto maior a vontade, maior a frustração; o fracasso. Sabia disso por experiência própria. Preferia agonizar com os ferimentos já obtidos.
              O pirata não tinha moedas. Ele prometia poder pagar em breve e em breve parecia melhor do que o nunca no qual me encontrava mas, ele era um sonhador. Admitiu estar planejando um grande feito mas, não tinha sequer um navio. Não teve receio de revelar, aliás, não tinha nada além de sua vontade e que fazia questão de começar assim, para poder saber com quem ele poderia contar de verdade. Somente aqueles que confiassem nele, de fato, o seguiriam. Era sua única exigência. Cada qual teria seu papel e isso deveria ficar bem claro. Ele tinha tudo planejado. Seria um trabalho de muitas provações, ele não negava. Não seria nada rápido, não seria nada fácil, mas não seria, também, nada ordinário. O que ele tinha a mostrar, ele dizia, era uma possibilidade de muitas possibilidades...  
Diante de sua certeza inabalável, me senti ainda mais medíocre. Diante de sua coragem, me senti ainda mais covarde. Odiei Ônix Pedra-Negra, quando o conheci, e o odiei ainda mais quando ele partiu, naquele dia, por ver que não me moveria. Me deixou no chão daquela taverna com meus pensamentos. É, ele já havia me amaldiçoado. Não podia deixar de olhar para tudo ao meu redor e imaginar se seria possível mudar aquela realidade.
Meu desconforto se tornou tão grande que meu plano de morrer lentamente naquela taverna, entorpecido por goles de rum derramados em minha goela por uma alma um pouco menos atormentada do que a minha, enquanto eu amaldiçoava a humanidade, já me parecia mais um bom plano. Teria, dali em diante, de me culpar, juntamente com a sociedade. Ônix Pedra-Negra me deu uma chance e neguei...

Lembrei-me de tanta coisa que descobri e que mudaria o mundo. Mas a sociedade não queria mudar. Mudar não é fácil. Até hoje, costuram as duras botas feitas de couro. Um dia inteiro, quase, para um par ficar bem costurado, quando seria mais fácil juntar as partes, colando-as com um grude, feito com a partir do simples aquecer da resina retirada da madeira mais usada nas construções. Sem a resina, a madeira não cria mofo e dura muito mais. Isso é inteligente. A resina, no entanto, é jogada fora em quantidades enormes. Isso é estupidez. Quando revelei poder terminar uma bota em poucos minutos, ninguém aceitou a novidade. A sociedade, mais de uma vez, não me deixou mostrar como poderia ser mais eficaz. Assim como as mulheres nunca me deixaram mostrar como eu poderia ser mais carinhoso e atencioso do que qualquer homem. Eles eram idiotas e comecei a me perguntar se eu era tão diferente deles. Também não aceitei mudar, quando Ônix Pedra-Negra me deu uma chance.
Criei forças e me levantei, a muito custo; físico e emocional. Saí da taverna lentamente e bastaram poucos passos com o sol da manhã atrás de mim, para que eu parasse e pensasse: “O que estou fazendo? O mundo não tem mais nada para mim e eu não tenho mais nada para o mundo...”
Olhei para minha sombra no chão, um grande círculo escuro, e não pude deixar de rir, ao repetir algumas vezes, para mim mesmo, em minha mente, as palavras do pirata: “Redondamente enganado... redondamente...”
Ônix Pedra-Negra tinha senso de humor, isso ninguém podia negar, mas tinha algo mais. Ele sabia de algo que eu não sabia e minha pergunta seguinte foi: o que diabos um pirata saberia sobre o mundo, ou sobre mim, que eu não poderia saber? E minha conclusão foi: “Muitas coisas, se, enquanto eu estava desabado num chão, ele estivesse se preparando para esta grande aventura a brilhar em seus olhos.”

Virei para o sol, com determinação. A luz iluminou diretamente minha cara acostumada às sombras e a contorci, cego por alguns segundos. Acredito que é assim mesmo. Quando estamos acostumados com a escuridão e alguém nos mostra a luz, a primeira coisa que fazemos é contorcer a cara na careta mais horrenda que sabemos fazer.
A primeira coisa que vi, quando meus olhos se acostumaram com a luz do sol, com os músculos da cara ainda repuxados, foi uma bela garota. Estava parada, olhando para mim. Sua expressão era de medo. Não. Pavor descreve melhor. Nunca esquecerei os olhos arregalados dela. Lindos olhos, de um azul profundo. Ela era linda. Éramos exatamente o oposto um do outro. Eu era enorme, grosseiro, feio e ainda fazendo uma careta, enquanto ela era esbelta, graciosa e linda. A mais linda que já vi em minha vida. Sua pele era clara, os cabelos vermelhos, bem lisos e curtos, sequer tocavam os ombros. Os lábios, minha nossa! Carnudos, um pouco entreabertos, como se fosse dizer algo. “Mais uma garota linda que nunca me deixaria tocá-la.”, pensei. E novamente senti o hálito do fracasso em minha cara suja. Até a cara de medo dela era linda. Aquela criatura não conseguiria ficar feia nem se quisesse. Ela se esforçou para despertar de seu espanto e continuar seu caminho, não sem olhar para trás algumas vezes enquanto andava rapidamente. Provavelmente por medo de ser perseguida, por um monstro, pensei.
Tudo o que eu queria naquele momento era uma adaga para cravar em meu peito e acabar de uma vez por todas com todo aquele sofrimento. E, ao olhar para o lado, vi uma mão, envolta em trapos, oferecendo-me a mais brilhante adaga que meus olhos tinham visto. Seria uma alucinação? Seria o demônio? Virei rosto para ter certeza.
Diante de mim, saído não se sabe d'onde, estava um velho, com barba tão longa como seus cabelos, muito mais brancos do que o manto encardido a envolvê-lo. Brancos também eram seus olhos, completamente, de uma forma assustadora. Mesmo não olhando para mim, senti que aquele velho me via, como nem mesmo eu fazia.

Ele não falou nada. Apenas suspendeu a mão um pouco, como se dissesse: “Aqui está, sua adaga mortal, para por um fim nisso tudo...”.
– O que quer, velhote? – perguntei. Minha voz o mais grave possível. Queria assustar o velho, ou disfarçar o meu susto, não sei dizer.
– Não interessa o que quero. Interessa, agora, é o que você quer – ele disse.
– Mais um... – resmunguei. – É amigo do pirata?
– De certa forma – ele respondeu. – Assim como sou seu amigo também.
– Meu amigo? – perguntei, incrédulo. – Oferecendo-me uma adaga para eu me matar?
– Eu disse que era para você se matar? – o velho me pegou. – Por que eu faria isso?
– E para quê é esta adaga? – perguntei, nervoso; comigo, não com ele.
– O pirata precisa de sua ajuda – o velho respondeu. – Ele se meteu em problemas e vai morrer se você não o salvar. Está amarrado agora, numa praça pública, onde será enforcado.
 – Não tenho nada a ver com isso, velhote...
– Sim, tem tudo a ver com isso – ele me interrompeu. – Você é um construtor. Como bem sabe, cada peça é importante num mecanismo. Se você não fizer sua parte, o pirata morrerá e não fará a parte dele e o mundo perderá um brilho que está longe de ser o farol que deve ser. E, se você está pensando em se matar, como parece ser o caso, pode muito bem tentar salvá-lo. Se falhar, morrerá e terá atingido um dos objetivos, de qualquer forma.
Ele riu. Algo naquilo tudo fez certo sentido para mim. Se eu falhasse, merecia morrer e colocava um fim naquele sofrimento todo. Mas, se eu conseguisse ajudar o pirata, talvez provasse para mim mesmo que era capaz de algo.
O velho me mostrou qual direção seguir. Caminhei rindo, nervosamente, de mim mesmo, ao sonhar em realizar um grande feito do qual me orgulhar. Não sentir vergonha de mim, já seria um grande passo; imaginar que poderia sentir orgulho, fazia meu coração disparar. Algo queimava no meu estômago, cada vez mais intenso e mais acelerado, assim como meus passos, transformados, em pouco tempo, numa corrida.
Feito uma criança, me imaginava salvando o dia de forma triunfal, derrubando soldados e mais soldados com golpes de um mestre de artes de combate, que eu não era. Mas, em minha imaginação, havia os aplausos das pessoas boquiabertas com meus movimentos.
A cada passo minha excitação aumentava, juntamente com os sons de uma multidão na praça na qual eu logo chegaria. Imaginei seis... não; dez soldados! Que derrubaria um a um, com minha descomunal força e com a adaga do velho cego.
Ninguém seria páreo para mim. Afinal, eu era imenso e isso deveria me dar alguma vantagem. Quando cheguei na praça, porém, meu coração quase parou, assim como os passos acelerados. Havia mais de cinqüenta soldados. Muito mais, com certeza. E quase toda a cidade estava reunida.

***
O charuto de Rola-Pança terminou e ele fez uma pausa. A mulher estava em silêncio e ainda nas sombras. Talvez ela aproveitasse aquela deixa para ir embora, sem ouvir o restante da história. Ou talvez ela o escutasse até o fim e o matasse para evitar que ele tentasse avisar Ônix sobre a ameaça. O bigodudo homem não tinha como saber.
Se a mulher esperava para matá-lo após seu relato de como o pirata Pedra-Negra entrou em sua vida, para que ele entendesse quando foi que escolheu seu caminho para aquela morte, Rola-Pança não teria pressa em terminar o relato, certamente.
 Se a mulher havia decidido poupá-lo, cabia a ela decidir se o que escutava era interessante o suficiente para ir até o fim.
– Aceita um chá preto? – Pança perguntou. Sempre que acabava de fumar apreciava um chá preto bem forte. Era quase um ritual.
– Não – ela respondeu. – Mas pode buscar para você.
O chá ela não tinha aceitado mas, pelo visto, havia aceitado escutar a restante daquela história, Rola-Pança pensou. Enquanto pegava o chá, porém, lhe ocorreu que ela poderia apenas estar esperando para matá-lo quando voltasse com o chá. Ou poderia simplesmente ter partido assim que se viu sozinha na sala.
“Será que chego ao meu fim hoje? Ou será que chego ao fim da história? Ou chego a ambos?” Rola-Pança se perguntava, enquanto esquentava seu chá.
Encheu uma caneca com o líquido quente, voltou para a sala e ficou bastante surpreso ao chegar lá.

***
Rola-Pança
Capítulo II – De pé

Rola-Pança parou sob o arco da entrada da sala. A surpresa não se devia ao fato de a mulher ainda estar lá e sim de estar, agora, ao alcance da luz.
Em frente a sua enorme poltrona havia uma cadeira bastante requintada, até. A mulher estava sentada ali. Entre os dois assentos havia uma mesa baixa de metal. Sobre a mesa estava a única lamparina acesa.
A mulher estava de costas para Pança. O imenso homem se perguntou se isso seria um sinal de confiança nele ou se ela o provocava a atacá-la para justificar matá-lo.
Segurando sua caneca quente com ambas as mãos, Rola-Pança passou pela mulher e sorriu. Ela não retribuiu o sorriso. Olhava para ele com a frieza de uma assassina. Era linda. Cabelos negros como uma noite sem lua. A pele muito clara. Um ar de soberania e convicção a tornavam uma mulher ainda mais fascinante.
– Vai continuar agora? – ela perguntou.
– Ah! Sim – ele falou. – Cheguei na praça onde o Pirata Ônix Pedra-Negra seria enforcado e, naquele instante, quem ficou sem respirar fui eu. Por um breve instante, certamente por não ser uma corda a prender meu ar e sim a estupefação ante aquela realidade.  

   ***

O palanque para enforcamento era imenso e alto. Havia mais de vinte soldados de cada um dos lados e mais de trinta em cima da estrutura de madeira, onde os criminosos eram enforcados.
   
Fiquei boquiaberto. Não fazia sentido. O pirata Ônix Pedra-Negra não podia ter tido tempo de realizar o seu grande feito, ou qualquer coisa que o fizesse ser digno de tamanha pompa. Aquilo era um espetáculo para execução de um famoso procurado, no mínimo.

Foi um menino de olhos esbugalhados, segurando um rato branco, quem me esclareceu o que acontecia, ao me perguntar:
– Eu e o senhor Jota... – Ele ergueu um rato. – ... podemos subir em seus ombros, senhor? Gostaríamos de ver como Raposa-Cinzenta vai escapar.
Raposa-Cinzenta era um velho procurado por crimes contra o rei Ulysses de Valdrick. Há tempos era perseguido e, pelo visto, a caçada havia chegado ao fim. Não se tratava do Pirata Ônix Pedra-Negra. “O velho cego havia me enganado?”, Indaguei-me. “A intenção dele era me fazer simplesmente imaginar como seria realizar algo? Para me fazer sentir aquele treco na barriga? Sentir alguma emoção, que não a angústia que me dominava?”
– E como sabe que ele vai escapar, guri? – perguntei do alto dos meus quase dois metros, em direção ao pirralho de olhos esbugalhados.
– Ele não está sozinho – o moleque falou, com brilhos nos olhos. – Tem um pirata com ele. Raposa-Cinzenta foi cercado por muitos soldados e o pirata veio ajudá-lo. Eu os vi lutando em frente à loja de laticínios do senhor Degrouse, ali atrás, onde eu trabalho de assistente. Acredite, meu senhor, nunca vi nada assim. Eles derrubavam um por um. Foi fantástico! Tenho certeza de que vão escapar agora. Teriam escapado da primeira vez, não fosse...
Deixei de ouvir o que o menino dizia, pois a multidão gritou, alvoroçada. Os dois prisioneiros eram empurrados escada acima por alguns soldados. Vi o home que devia ser o Raposa-Cinzenta e, atrás dele, vi o pirata Ônix Pedra-Negra e ele me viu. O maldito sorriso dele apontou, por poucos segundos, em sua boca. Ele inclinou-se aos ouvidos daquele que era o verdadeiro merecedor daquele espetáculo. Claro que não ouvi o que ele disse, assim como mais ninguém além de Raposa Cinzenta, mas senti que ele falava de mim. O maldito esperava que eu fizesse algo. Pior: ele sabia que eu faria. Como?

Hoje, me divirto em imaginar se aquilo foi um plano do pirata Ônix Pedra-Negra. E se ele simplesmente ajudou Raposa-Cinzenta a enfrentar os soldados para ser preso? Era bem provável, até, que ele mesmo tenha denunciado o tal famoso procurado, para serem presos. Tudo isso apenas para me colocar à prova. Mas, ele não podia saber se eu faria algo e se eu teria algum êxito, aliás. E, por isso, digo que, se ele agiu assim, fez uma aposta. Ele apostou sua vida, ao acreditar em mim. Se ele vencesse, continuava vivo e ganhava um aliado; em verdade dois. O respeito de Raposa-Cinzenta ele já tinha conquistado, e não era por menos. Depois entendi o motivo.
Se, naquele dia, Ônix Pedra-Negra tiver apostado, quero acreditar que ele acreditava que, se perdesse a aposta, era melhor fracassar sem ter ido longe demais.

Seríamos dois apostadores, então. Havia decidido que seria alguém ou não seria. Morreria tentando, com um pouco de glória, ao invés de viver com muita vergonha.  
Tratei de olhar ao redor da praça: o velho mestre das apostas, com uma tocha, perto do palanque, gritava, rindo: “Num enforca esses maldito. Quêma eles tudo!”. O lado esquerdo do palanque dava para um estreito beco, que se tornou estreito graças à nova casa de um nobre, em construção. Do lado direito do palanque, havia um escorredouro, que começava junto à parede da primeira casa, pois a praça era em declive de lá para cá. Por ele a água da chuva passava por baixo da base de todas as casas até a base da igreja, ainda inacabada, no fim da praça, no ponto mais baixo, atrás de mim. Mais rápido do que imaginei que imaginaria, tinha um plano e comecei a agir.
– Ei, moleque! – falei para o menino de olhos esbugalhados. – Quer viver sua própria aventura? Vamos ajudá-los a escapar!
Os olhinhos dele arregalaram-se ainda mais e sua boca se abriu para me mostrar apenas alguns dentes, num sorriso de fascínio.
Sabia qual era a loja de laticínios do senhor Degrouse, onde o moleque trabalhava. Perguntei se ele poderia conseguir lá, um rolo novo de cordas grossas, uma garrafa da bebida mais forte e um belo pedaço de queijo. Ele disse que conseguiria, fazendo de conta ser um pedido para um cliente e que voltaria logo. Estava muito empolgado.
Subi pelo canto da praça, certificando-me de que o escorredouro tinha a espessura certa. Atravessei para o outro lado e, da entrada do outro beco, vi o arauto desenrolar, no alto do palanque, a lista dos crimes de Raposa-Cinzenta. Rezei para ser extensa o suficiente. Alegrei-me ao ver vi os barris no beco, atrás da nova construção, como esperava ver. Olhei para o final do beco e não havia saída dali, recém fechado com uma mureta. Meu plano já seria arriscado sem, aquele detalhe. Era a melhor alternativa, no entanto.
Rolei os barris para o final do beco e enquanto os esvaziava. Encontrei uma serventia para eles, instalando-os estrategicamente perto da mureta.
Após estes preparativos, voltei para a praça e procurei pelo moleque. Ele já me esperava onde nos falamos. Fui até ele e me surpreendi em ver que, sozinho, havia conseguido trazer tamanha corda pesada. Ele suava bastante, o magricela, mas estava feliz.
Descemos até o final da praça. Algumas pessoas passavam por nós, correndo para não ver o enforcamento mais de perto. Contei ao moleque o que deveria fazer e ele subiu com o pedaço de queijo, deixando comigo a garrafa com a bebida, o rato e a corda. Puxei um fio dela e envolvi o peito o animalzinho como se fosse um colete. Com outro fiapo o prendi, através do pequeno colete, na ponta da corda grossa.  . O rato também faria seu esforço.
O menino chegou ao início do escorredouro, lá em cima, e colocou bem na entrada. Por minha vez, enfiei o rato na entrada perto de mim e vi a corda se desenrolando, escuridão à dentro, levada pelo bicho. Às vezes parava, para aumentar minha aflição, mas continuava. Não poderia esperar para saber se isso daria certo.
Levantei-me e fui com a outra ponta da corda até um balde de metal amarrado  a outra ponta da corda que se subia até a torre mais alta da Igreja de Dáverus. Amarrei a minha corda naquele balde e entrei na igreja.
A construção não tinha nenhum vigia, pois não havia nada que podia ser levado dali ainda. Subi diretamente até a torre, suando meus medos. Cada segundo era importante. Meu corpo queimava e, quando cheguei ao topo, o vento frio quase me congelou. O que eu estava prestes a fazer mudaria tudo para mim.
Olhei do alto para a praça lá em baixo. Ônix Pedra-Negra e Raposa-Cinzenta ouviam a lista de crimes do segundo, pelo qual os dois morreriam. Ônix sabia que ele não era a estrela principal e seu nome sequer seria perguntado ou citado. Era apenas o comparsa. E sem minha ajuda, morreria assim. Mas, sem a ajuda dele, eu teria morrido sem imaginar que era possível viver. Eu me sentia vivo, como nunca senti.
 Um arrepio tomou conta do meu corpo quando me virei para a enorme estátua de Dáverus, envolta em tecido grosso, recém colocada na platibanda da torre, como os rumores, sempre constantes na taverna, haviam me dito.
Muitas cordas envolviam a estátua, envolta pelo pano. E amarradas nelas, muitas outras iam dela para as colunas enormes atrás de mim. Estavam bem esticadas para impedir que alguma caísse graças a algum eventual vendaval, antes que pedras de reforços fossem colocadas. Estas pedras seriam trazidas para cima no balde, amarrado a uma corda que podia ser puxada, trazendo-o para cima.
 Fui para o parapeito e puxei rapidamente o balde, onde havia amarrada a minha corda. Peguei a ponta dele e, sem perda de tempo, a passei pela imensa roldana, que a trouxe lá de baixo, antes de dar voltas e voltas na enorme estátua de Dáverus.
Ouvi um farfalhar alto atrás de mim e me assustei. Virei em posição de combate. Vi apenas um pombo deixando a torre. O susto me deu força extra e tratei de usá-la para empurrar a estátua gigante até tirá-la de seu eixo.
Urrei um bocado e finalmente ela se deslocou e teria caído da torre, não estivesse presa ás imensas colunas pelas cordas grossas. Não pude deixar de pensar que foi muito mais fácil, para mim, mover aquela gigantesca estátua, do que foi para Ônix, me mover da taverna. Mas, ele conseguiu fazer isso em tempo e esperava que eu também tivesse tempo para fazer o que ousadamente havia planejado.
Molhei, com a bebida forte, as cordas que rangiam por sustentar tamanho peso daquela estátua enorme. Consegui faíscas com duas pedras pude colocar fogo nas cordas. Tratei de correr escadas a baixo, imediatamente. Minha descida foi ainda mais rápida que a subida.

            Quando saí da igreja, vi o moleque lá em cima, no início do escorredouro, com seu rato e a ponta da corda na mão. Ele sorria maroto esperando para a segunda parte de sua missão. Para tal ele precisava de uma distração: eu.
Subi rapidamente pela praça. Peguei a tocha do homem que mal sabia construir uma frase, derrubando-o facilmente, tão magricela era. Caminhei para a entrada do beco, do lado esquerdo e olhei para o palanque, onde ainda acontecia a leitura dos crimes.
O velho Raposa-Cinzenta tinha do que se orgulhar. Ônix olhou para mim. As cordas já estavam ao redor do pescoço, assim como no pescoço do novo amigo. As mãos estavam amarradas nas costas. O carrasco já estava com a mão na alavanca que liberaria as aberturas por onde os corpos ficariam pendurados. Eu tinha medo. Muito medo. As cordas em chamas no alto da igreja não iriam agüentar muito tempo.
Enchi a boca com o resto da bebida e me aproximei do palanque cercado de soldados. Coloquei a tocha em minha frente e em direção aos pés do homem da lei mais próximo de mim.
A baforada de fogo chamou a atenção de todos. A leitura dos crimes foi interrompida e todos os soldados voltaram-se para mim. 
O guarda atingido pela baforada pulava para apagar o fogo em suas pernas e a multidão se afastou um pouco. O tumulto revelava minha pretensão de salvar os prisioneiros e, por isso, soldados vinham em minha direção.
O moleque teve tempo de fazer o que pedi. Torci para dar tempo. A corda no alto da torre de Dáverus ardia, já havia um bom tempo...
            Enchi a boca com mais bebida e ameacei com a tocha, mirando em cada soldado que tentava se aproximar, mas recuava ante a ameaça. Olhei por cima deles e vi que o menino já estava no segundo nó no palanque. Era mais ágil do que imaginei. Cada nó era importante. O primeiro prendia a corda ao pino principal daquela estrutura e o segundo, no final da corda, prendia a corda enrolada numa das vigas de sustentação. 
Gosto de imaginar que via as cordas cedendo ao fogo lá em cima da torre, enquanto o menino corria pra longe com seu rato branco, mas, o que vi mesmo foi a estátua de Dáverus cair do alto da igreja,  puxando violentamente a corda que amarrei a ela e que passava por baixo do escorredouro por toda extensão da praça, desde lá em baixo até lá em cima, de onde a corda saía.
 Antes que a estátua tocasse o solo, se espatifando num estrondo assustador, a corda explodiu o pino da estrutura com o primeiro nó e, quase no mesmo instante, puxou uma das vigas com o segundo nó.
A grossa corda arrebentou-se no processo, mas o solavanco na viga foi forte o bastante para tirá-lo do lugar e ninguém no palanque, carrasco, soldados ou prisioneiros, se movia. Qualquer movimento traria o palanque abaixo.
Os soldados que estavam no chão já não prestavam restavam atenção em mim. Tentavam entender, petrificados, olhando do início da praça lá em baixo para o palanque prestes a cair. Somente o povo corria, assustado, para todos os lados.
            Lembrando agora, realmente não acredito como acreditei que aquilo poderia ter funcionado. Mas, por sorte, acreditei, mesmo antes de descobrir que nossa mente consegue afetar a realidade, como Holdur, o velho cego, veio a me contar mais tarde, numa de suas muitas visitas. É, me tornei amigo do velho cego. O poder de nossa mente sempre foi forte, ele dizia, mas foi ampliado ainda mais, neste Novo tempo, nos permitindo fazer coisas que, antes, eram consideradas improváveis. Holdur me disse que ainda vai me dizer como este salto aconteceu, e, não duvido. Vi, várias vezes, a vontade sustentar coisas até o momento certo, para ser tolo de não acreditar.
Ônix pareceu entender meu plano e deu um passo à frente, esticando a corda no seu pescoço. Um ranger miúdo cresceu. O palanque desabou.
Durante a queda, Ônix ergueu as pernas e passou as mãos, ainda marradas, para a frente. O impacto da plataforma no solo quebrou, de um dos lados, a estrutura na qual as cordas para o enforcamento estavam amarradas. Ônix e o velho Raposa-Cinzenta escorregaram, pendurados pelo pescoço, até caírem para fora da plataforma, rolando para o chão.
Raposa-Cinzenta se mostrou hábil e num pulo passou as mãos para frente. Todos os soldados que estavam no alto da plataforma caíram, uns em cima dos outros.
Os soldados no chão alternavam os olhares entre eu e os dois prisioneiros do outro lado. O estrondo da queda da estátua de Dáverus abalou o senso de dever deles.
 Percebendo a confusão dos homens, aquele que deveria ser o general, ordenou um ataque aos prisioneiros. Todos correram em direção a Ônix e o velho Raposa. Alguns tentavam passar por cima de seus amigos, caídos do palanque, outros tentavam levantá-los para juntos avançarem.
Sinalizei com a tocha, indicando o beco atrás de mim, Ônix e Raposa-Cinzenta entenderam. Ao invés de correrem na direção oposta ao ataque dos soldados, vieram em minha direção, na direção dos soldados. Confiaram em mim. Aquilo me fez sentir importante e sorri, sem querer, vendo os dois subindo na parte mais baixa do palanque, perto deles e correndo para a parte mais alta, próxima a mim.
Enquanto os soldados iam pelo chão, os dois vinham, pelo alto do palanque e rapidamente saltaram, parando ao meu lado.  
Os soldados, com visível transtorno, voltaram. A tocha em minha mão, porém, juntamente com a garrafa de bebida forte, os fizeram se lembrar da cusparada de fogo. Vinham devagar, cautelosamente. Provavelmente sabiam que o beco atrás de nós não tinha saída. E sabiam que eu não poderia cuspir fogo em muitos deles. Estávamos em aparente desvantagem.
Cuspi fogo nos soldados mais próximos. Os fugitivos, ao meu lado, esticaram as cordas que amarravam seus braços. Coloquei a garrafa debaixo do sovaco e, com a mão livre, saquei a adaga que o velho me deu e os libertei rapidamente. 
– Corram até o final do beco. Os barris ajudarão a subirem na mureta – ordenei.
– Não vamos fugir de uma boa briga – Ônix falou.
– Aliás, quem os impedirá de vir atrás de nós? – O velho Raposa perguntou.
– Eu impedirei – respondi e completei, antes de encher a boca novamente de bebida: – E não vamos fugir duma boa briga, vamos fugir duma péssima morte! Eles são muitos! Corram! Mas, com cuidado. Derramei, pelo chão, o que tinha nos barris. 
Eles correram e eu também. Os soldados vieram atrás, como uma avalanche e, quando estávamos na metade do beco, na parte limpa do chão, me virei e cuspi mais fogo. Não na direção deles. Mirei chão, coberto de uma certa resina, retirada da madeira mais usada nas construções, como a casa nova, que tornava o beco ainda mais estreito.
Os soldados hesitaram enquanto eu tacava mais bebida na boca e cuspia fogo e mais fogo pelo chão. Eles esperavam o líquido do ter fim. Era uma questão de tempo, eu sabia. Não importava, seria o suficiente. 
Acho que já mencionei minhas descobertas que facilitariam a vida de muita gente. Até hoje, costuram as duras botas feitas de couro. Um dia inteiro, quase, para um par ficar bem costurado, quando seria mais fácil juntar as partes, colando-as com um grude, feito com a partir do simples aquecer da resina retirada da madeira mais usada nas construções. Sem a resina, a madeira não cria mofo e dura muito mais, Isso é inteligente. A resina, no entanto, é jogada fora em quantidades enormes.
Até aquele dia, sabia que minhas descobertas facilitariam a vida de muita gente. Só não havia imaginado que salvariam minha vida e a de meus novos amigos. A construção na esquina indicava que barris de resina estariam ali atrás, para serem jogados fora.
Quando a bebida inflamável acabou, me pus a correr. Os soldados vieram atrás. O calor no chão tinha sido o suficiente para o grude se prender nas solas das botas dos soldados a ponto de provocar algumas quedas.  
Ônix e Raposa-Cinzenta já estavam em cima de alguns barris e esticavam as mãos para me ajudarem. Eu era pesado demais, porém. Imaginei que os traria de volta para baixo. Parei. Olhei para trás, para os soldados desconcertados, presos ao chão, e resolvi ir em meu tempo.
            Quando consegui subir num barril, meus dois companheiros de aventura já estavam em cima do muro. Ônix me alertou e virei-me. Um dos soldados tinha tirado sua bota e corria em minha direção, com a espada em riste. Senti-me em desvantagem, pois eu tinha apenas a adaga. A espada dele poderia atingir minhas pernas sem que eu conseguisse alcançar seu braço. Nos poucos segundos que gastei pensando nisso, outros dois guardas se soltaram e vieram igualmente com suas espadas firmes nas mãos.
 Vi os três vindo em minha direção. Aquilo estava saindo do controle, precisávamos fugir, antes que todos os soldados se soltassem do grude.
Não podia deixar Ônix e Raposa-Cinzenta descerem para me salvar. Eu tinha apenas uma adaga, mas era a adaga, dada por um velho místico. Devia ter um propósito maior do que cortar as cordas dos fugitivos.
 Enchi-me de coragem e a saquei a adaga, gritando de forma triunfal, como jamais sonhei fazer, com tamanha ferocidade que a deixei cair...
Senti-me um idiota. Os soldados estavam a poucos passos de mim.
***

Rola-Pança fez uma pausa. Tinha acabado de tomar o último gole de chá preto e resolveu colocar a caneca sobre a mesa.  Próxima ao lampião.
A mulher diante dele esperava. As pernas cruzadas. Os braços dela sobre os braços da cadeira. Ao seu lado estava uma espada embainhada. Novamente ele estava desarmado ante uma ameaça. “Ela será mesmo uma ameaça a mim?”, ele se perguntou. Sobreviveu ao salvamento de Ônix e Raposa-Cinzenta, certamente, mas não tinha certeza se sobreviveria à visita daquela assassina.
A mulher notou o olhar de Rola-Pança para sua espada e esperou ele se recostar novamente em sua cadeira para dizer:
– Não sou uma ameaça a você. Não me deu motivos. E só serei uma ameaça a Ônix se ele o fizer.
Rola-Pança teve de rir.
– Olha, moça, se tem uma coisa que Ônix faz é dar motivos.
– E ainda assim me disse que acreditava estar colaborando com ele ao me revelar seu paradeiro, mesmo quando eu disse que ele provavelmente seria apenas mais um a morrer em minhas mãos. Por quê?
– É por isso que me escutou até agora? Para entender isso? – Pança perguntou.
– Sim. Mas seu relato até agora não foi desinteressante. Pelo contrário.  
– Pois terá esta resposta – Rola-Pança revelou. Agradava-lhe ter alguém querer escutar sobre seus tempos de aventuras. – Antes de chegar a este ponto, porém, preciso concluir a relata sobre aquela escapada. Ah! Se preciso!

O homem pensou ter visto um sorriso no rosto da bela mulher. A máscara de frieza, no entanto se firmou ali novamente e não deu sinal de que cederia. O coração de Pança, porém, teve um alento de esperança de que as revelações que faria tivessem alguma valia no julgamento da mulher em relação a Ônix Pedra-Negra. Se fosse o caso, ele o teria salvado mais uma última vez.

***
Capítulo III – De volta ao chão

Rola-Pança limpou a garganta para continuar seu relato sobre como impediu que Ônix Pedra-Negra fosse enforcado. Ou melhor: sobre como teve seu papel em tal fuga já que, encurralado pelos soldados, sobre os barris encostados na mureta, abaixo de Ônix e do velho Raposa-Cinzenta, ambos fora de perigo; Rola-Pança teria se tornado apenas um nome a ser lembrado, não tivesse sido resgatado.
Não tinha vergonha de admitir ter sido salvo, enquanto salvava Ônix. Por isso, sorriu para aquela bela invasora, sentada à sua frente, e continuou seu relato.
***

Os três soldados vinham. Outros logo estariam soltos. Eu estava perdido. Desarmado e paralisado. Como se enfeitiçados, porém, os dois soldados pararam. Olhavam para cima e largaram as espadas.
Olhei para trás e vi três flechas apontadas para os soldados. Ônix e Raposa tinha as cordas de seus arcos esticadas como seus lábios. Sorriam em triunfo. A terceira pessoa com um arco e flecha era quem havia trazido tais aparatos bélicos. Era a moça linda que tinha visto quando saí da taverna, a tal garota mais linda que já vi na vida. E nesta fração de segundo, minha fé foi restaurada: A adaga foi vital para desamarrar os fugitivos pois, assim, eles eram três mirando em três alvos. Se fosse apenas ela, dois soldados poderiam me alcançar e me fazer de refém. 
Subi na mureta e fugimos para um lugar abandonado. Era usado como refúgio por Raposa-Cinzenta em momentos como aqueles.  
Enquanto recuperávamos o fôlego, desatei a rir. Não sei se por nervosismo, alegria, ou os dois. Todos riram também. A primeira a falar foi a garota ruiva. Ela falou, simplesmente. Veio de joelhos até ficar de frente para mim, mirou seus olhos profundos nos meus, e perguntou:
            – Como você fez isso?
– Amarrei uma corda, num rato, que passou pelo escorredouro para alcançar um queijo. Amarrei a outra ponta da corda na estátua de Dáverus, e garanti que ela cairia. Meu pequeno ajudante; não o rato, mas o menino dono dele, amarrou a ponta levada pelo bichinho no palanque enquanto eu desviava a atenção dos soldados...
Ela riu, como se eu tivesse fazendo graça, e perguntou novamente:
– Sério, me diz, como fez isso. Como leu minha mente? Quando olhei para você esta manhã, pensei em pedir sua ajudar para salvar meu pai, mas não tive coragem. Afinal, quais razões teria para me ajudar? Provavelmente era mais um cara insensível como tantos outros, admito ter pensado. Mas não era. Você sentiu que eu precisava de sua ajuda. Como? 
Os olhos dela brilhavam com lágrimas. Ah! Como me senti tentado a dizer que ela estava certa, para simplesmente conquistá-la. Mas o que respondi foi:
– Não. Não senti que precisava de mim... digo... de minha ajuda. Havia conhecido o pirata e resolvi ajudá-lo. Não por ele, mas por mim; por minha glória. Era isso que eu queria. Queria me sentir vivo e ele só me proporcionou condições para isso. Esta é a verdade.  
Ela ergueu as sobrancelhas e sorriu novamente antes de falar:
– Tudo bem. Você não tem a sensibilidade para ler minha mente, mas tem sensibilidade para ser sincero. Com você mesmo e comigo; sem querer me enganar para me impressionar. – Ela sorriu. – Não conheço homens assim. E quer saber? Isso me deixou impressionada! 
– E, se vocês querem saber, precisamos comemorar! – exclamou o velho Raposa-Cinzenta. – Conheço uma taverna onde podemos celebrar, sem nos preocupar com visitas de soldados.
– Sim, temos muito a comemorar! – Ônix falou. – Vidas foram salvas hoje!
Ele estava certo. Vidas. Incluindo a minha. 

Celebramos noite adentro. Ônix e Raposa-Cinzenta conversaram bastante e o velho deu muitas dicas para Ônix, de como não ser preso. Os dois não teriam sido aprisionados, aliás, como o moleque teria me contado, se a população não tivesse o interrompido ao ver os condenados serem empurrados para o palanque, se Leila, este era o nome da filha de Raposa-Cinzenta, não tivesse sido feita de refém.
Eles se entregaram para ela ficar livre. Claro que ela foi levada também, mas, por  não ter culpa de ser filha de um ladrão, e ser extremamente linda, ela foi escoltada para a casa do general, que se tornaria "responsável" por ela, dali em diante.
Leila escapou, no entanto. Faria de tudo para libertar o pai. Sentia-se culpada, aliás. Não gostava de ser vista como fraca e, não fosse ela, tudo poderia ter dado errado, esta que é a verdade.  

Foi assim que conheci Ônix Pedra-Negra. Devo a ele o que sou hoje, se parar para pensar bem. Ele me tirou daquela taverna. Me fez acreditar. Fui um dos seus primeiros marujos. É claro que foi difícil entender quando ele desmantelou o grupo.
Depois de dois anos ele dispensou todos nós. A maioria da tripulação lamentou e alguns se irritaram, até. Mas, no dia em que realizou o que é conhecido até hoje como seu maior feito, Ônix Pedra-Negra pagou um preço alto para continuar vivendo. Em verdade, ainda não terminou de pagar.
 Dizem que o preço para continuar vivendo e ter proteção é tão exorbitante, que corre sério risco de Ônix não pagar antes de seu prazo de um ano terminar. Se isso acontecer, a única proteção que tem, o tal capitão Hawk, se tornará seu carrasco.  
Meus camaradas disseram que ele desistiu, ao se entregar assim à tal dívida. A traição que Ônix sofreu, no entanto, transformou seu grande fito num grande fracasso.
Para ser sincero, duvido muito que Ônix considere, de verdade, ter realizado a sua maior proeza. Não era aquilo que ele tinha em mente, quando o conheci. Faltava algo. Talvez aquela proeza fosse apenas um passo para o verdadeiro feito. Um passo que precisava ter dado certo.
Daí fica fácil entender suas razões de ter desistido. Resisti em acreditar que ele tinha desistido, confesso. Hoje, porém, encontrei Ônix Pedra-Negra, após tantos meses e minha resistência foi quebrada.
Vi Ônix Pedra-Negra caído no chão da mesma taverna na qual nos conhecemos. A taverna do Coelho Caolho. Ele está vivendo quase que da caridade de Gertrudes, a atendente.
Quando o vi caído ali, no chão daquela taverna, me abaixei e falei, olhando bem nos olhos dele:
– Este não é o seu lugar, cap... meu amigo. – Minha raiva já tinha passado. Fui um dos que não entendeu. Havia me comprometido a acatar às suas decisões, porém, sem questionar, e assim fiz. Isso, no entanto, amargou em minha alma durante um tempo, mas se foi. Ele disse, no dia em que nos dispensou, que ainda iria se redimir aos olhos de todos.
– Rola-Pança, meu grande amigo! Sabe que suas palavras sempre terão peso para mim – Foi o que me respondeu, aquele puto sem mãe de um figa podre, quando o chão de madeira forte rangeu a um movimento meu. Não pude deixar de rir. E ele continuou: – Mas, estou no exato lugar onde mereço e devo estar, no presente momento. Você não teria recuperado sua vontade de fazer algo grandioso, se não a tivesse perdido, não é mesmo? Não teria aprendido a viver de pé, caso não tivesse desistido de sobreviver de joelhos. Se não tivesse “sub-vivido”, tombado ao chão. Agora é minha vez de passar por este caminho.
– Sempre achei que você estava alguns passos à minha frente, e não atrás –falei, pesaroso. – Aquela maldita traição foi uma facada nas costas, bem sei...
– Dezesseis mil duzentas e noventa e cinco facadas, para ser exato, numa só noite – ele enfatizou. Sabia a quantidade exata, afinal, havia dado dez moedas de ouro para cada pessoa que recrutou. O povo pelo qual ele tanto lutou. Pelo qual nós tanto lutamos. Levaram todo nosso ouro e toda a nossa esperança.
Senti um amargo em minha boca e, antes que pudesse falar, ele continuou:
– Assim como o corpo demora um pouco para se curar, a alma também tem seu tempo. “O que a lagarta chama de fim, o mestre chama de borboleta.”, escreveu, muito tempo atrás, um sujeito esperto para o seu tempo, Richard Bach era seu nome... um camarada e tanto do velho e esquecido tempo. Um brinde a ele...

Ônix ergueu uma garrafa quase vazia e bebeu um pouco do líquido, brindando a um escritor do passado esquecido. Eu já sabia que a contagem de nosso calendário havia substituído outra. O passado deveria ser esquecido e estas informações eram tão secretas, que o pirata Ônix Pedra-Negra não imaginava que eu as tinha.
Vez ou outra Ônix nos revelava algo, mas, quem me contou sobre muitos detalhes do velho tempo foi meu amigo, Holdur, o velho cego, que me visita vez ou outra. Holdur me contou que Ônix Pedra-Negra teve acesso a registros do passado esquecido, não apenas em livros, mas também através do que eram chamados de filmes; formas mágicas de contar histórias.
Havia muitas histórias fantásticas e o pirata acreditava que todas elas aconteceram de fato. Holdur me disse que Ônix Pedra-Negra passaria por uma grande provação, encarando, de uma forma intensa, a verdade sobre o passado esquecido. Isso aconteceria num momento de grande dor para ele, quando a fé nele mesmo seria testada, antes de realizar o maior dos maiores de todos os seus feitos.  
              Vendo-o ali no chão, me perguntei se seria este o momento e se seria eu a contar para ele que tudo o que ele acreditava ter acontecido, era pura imaginação de outros, meras histórias chamadas de ficção. 

Aquele momento era, certamente, um momento de grande dor e, mesmo acreditando em meu velho amigo cego, que enxergava além dos tempos, soube que o fiapo de esperança de Ônix, nele mesmo, se desfaria ali, se eu revelasse o que eu sabia.
Os heróis do passado haviam inspirado Pedra-Negra e ainda tinham seus papéis na alma do pirata. Ele esperava por algo, mas não era esta verdade. Não ainda. Ele esperava por alguém, pude sentir. Alguém que desse uma razão para sua existência, ajudando-o a cumprir uma promessa.
 Acredito ser você, tal pessoa. Por isso estou lhe revelando tudo isso. Se ele tinha de encarar a verdade sobre o passado-esquecido, e encontrar seu lugar no mundo, não seria a partir de minhas palavras. Citar o tal Richard Bach, um escritor do velho tempo, mostrava que sua crença no passado o fortalecia, de alguma forma. Tratei de reforçar este otimismo e tentar aliviar seu fardo, perguntando com um sorriso:
– Está me dizendo que o ferimento não foi fatal? Que não desistiu ainda?
– Ora, quem pensa que sou, marujo? – Me olhou com alguma fagulha daquele mesmo brilho que tinha nos olhos quando nos conhecemos.
– É o maior pirata de todos os tempos... – falei.
– Não – ele disse, novamente entristecido e quase apagando na bebedeira. – Ainda não... mas, quem sabe amanhã?... Semana que vem?... No próximo mês?... Vou tentar reservar um tempinho para isso... depois... agora, tudo o que preciso, e aprecio, é um bom gole de rum...
Ele bebeu o resto do líquido de uma garrafa e fechou os olhos. O olhei por alguns instantes e depois falei, sem ter certeza se ele ouviu:
– Ninguém de nós, da sua tripulação, o traiu naquele dia. O seguiríamos, se não tivesse nos enxotado. Teríamos ajudado a se livrar do capitão Hawk, aliás. Sabe disso não é?
– A omelete está quase pronta, minha linda Liz... – foi a última coisa que ele murmurou, feito um menino. Provavelmente sonhava com alguém importante, de muito tempo atrás, e me dei conta de não saber muito sobre seu passado, tanto quanto não sabia sobre seu futuro. Só me restou esperar que fosse o melhor para este meu amigo cabeça-dura. 
***

A luz da lamparina iluminava muito mal a sala de Rola-Pança mas foi o suficiente para notar alguma comoção no rosto da assassina.
– Devo a Ônix Pedra-negra o meu mais valioso tesouro – o homem falou, muito sério. – Minha amada Leila. Devo a ele tudo o que conquistei e me tornei. O homem sujo e analfabeto cedeu lugar a um alguém respeitado por muita gente, incluindo ele mesmo.
A Mulher nada disse. Apenas suspendeu o capuz de sua capa, ocultando seu rosto em sombras. Estava quase de partida. Rola-Pança ainda achava que tinha mais a dizer, no entanto, e continuou:
– Devo a ele meu velho amigo Holdur, que contou o real motivo de minhas invenções nunca terem tido uma chance, antes do advento do pirata Ônix em minha vida. O velho cego me contou sobre o que quase destruiu o mundo no passado-esquecido. A tecnologia, como era chamada a coisa, havia nascido assim, com invenções que facilitariam a vida e acabaram por quase exterminá-la. De alguma forma os governantes deste mundo trataram de manter as invenções sob controle. Holdur disse que, inconscientemente, aliás, toda a humanidade tinha medo, causado pelo trauma, da tecnologia. E se não fosse por Ônix, nunca teria descoberto isso. 
A mulher se colocou de pé, pendurando a espada na cintura.
– O que aconteceu, entre o dia que vi o pirata Ônix Pedra-Negra pela primeira vez e quando o vi, hoje, foi algo grandioso, ninguém poderia negar – o antigo marujo falou, balançando o volumoso bigode. Queria defender seu capitão o quanto podia. – O que virá depois, no entanto, é ainda maior. Tenho certeza. Enquanto ele acreditar, e sei que em algum lugar ele ainda acredita. A vida do pirata Ônix Pedra-Negra ainda vai mudar a vida de muita gente. De quem não está acostumado a ver muitas perspectivas de algo e, principalmente, de quem está.
A mulher nada disse, virou-se de costas e deu um passo. Teria ido embora. Pança, porém, falou:
– Como disse: já não acredito em coincidências. Encontrar meu antigo capitão, na mesma taverna onde ele me encontrou, na mesma situação na qual eu me encontrava, no mesmo dia em que fui encontrado por alguém que quer encontrá-lo... só pode ser um sinal da vida.
A assassina manteve o silêncio, embora tinha mantido, também, sua presença.
– Acredito haver uma razão para tudo e a razão de acreditar é minha fé na vida – o homem falou. – Um conselho que lhe dou, sobre Ônix, é: se tiver uma chance de embarcar na aventura dele, se permita. Quanto mais você souber sobre Ônix Pedra-Negra, mais saberá sobre você, pois ele, de uma forma divertida e intensa, te faz pensar... e isso não tem nada de ordinário.  
O dia iria nascer em breve. A assassina virou a cabeça para Rola-Pança como se fosse dizer algo. Não disse, porém.
            – Eu o deixei ali, na taverna do Coelho Caolho, caído, mas, sou capaz de apostar que, neste momento, ele está de pé, pois, quando saí de lá, esbarrei no mestre das apostas que entrava com um prisioneiro esfarrapado. Conheço Ônix o suficiente para saber que ele ajudaria um miserável. Pois foi o que ele fez por mim. Com sorte, verá a razão de Ônix Pedra-Negra ir além das lendas contadas sobre ele.
            – Isso se eu acreditar em tudo o que já escutei sobre ele – a mulher disse.
– Sobre a veracidade de tudo o que descobriu e vai descobrir sobre o pirata Ônix Pedra-Negra... bem, certa vez ele próprio me disse: "Se você tiver fé na vida ela terá fé em você e, com esta comunhão, tudo é possível!" – Rola Pança se colocou de pé e ofereceu sua mão, dizendo: –Já que tanto falei a ti, posso ao menos saber seu nome?
– Me chamo Mégane de L’arc – ela respondeu. Não apertou a mão de Pança, no entanto.
O nome era famoso, certamente. Por um lado, Rola-Pança ficou aliviado por ter contado a localização de Ônix, como ela desejava. Mégane de L’arc era uma assassina insuperável e nunca fracassava em seus interrogatórios. Ela caçava como ninguém e não era dada a perdoar. Por outro lado, aquela revelação trazia dúvidas a ele. Mégane era uma cigana e Ônix sempre evitava os ciganos o máximo que podia. Chegava a ficar bastante alterado, em evidente irritação, À mera menção daquele povo nômade. E Rola-Pança o entendia. O capitão havia lhe confidenciado que, durante a infância, precisou ficar sob os cuidados de um cigano. O tutor era o homem mais cruel neste mundo, segundo Pedra-Negra e os exemplos citados pelo capitão convenciam o marujo.
– Alguma possibilidade de se tornar amiga de Ônix? Rola-Pança ousou perguntar.
– Estou numa missão – ela respondeu. – Pelo que sei, Ônix Pedra-negra tem informações vitais para meu êxito. Eu o matarei se for preciso, tenha certeza disso.

Mégane deixou Rola-Pança a sós. O semblante do grande homem permaneceu preocupado por um bom tempo. O tom de voz da mulher denotava sinceridade. Era firme, embora houvesse notas de pesar. Eram estas que validavam suas palavras.
Não importa o quanto o antigo marujo tenha tentado ajudar seu antigo capitão, exaltando-o, ele não apostaria contra as palavras de Mégane e, sendo ela uma cigana, duvidava muito que Ônix fosse colaborar, para ajudá-la.
Por um bom instante considerou ter cometido um erro ao revelar a localização de seu antigo capitão. Seguiu seu coração, porém, como o próprio Ônix havia lhe ensinado. Restou confiar que assim deveria ser. 
O sol nasceu com a saída de Mégane. Pança teve certeza de que, em breve, bastaria perguntar por aí e teria detalhes sobre o resultado do encontro do pirata Ônix Pedra-Negra com cigana assassina Mégane de L’arc.

***



INESPERADO


˜ Ÿ ˜

Minha arte se tornou parte da minha vida e minha vida se tornou parte da minha arte. Escrevi um livro sobre um pirata e o interpreto em peças teatrais adaptadas. O interpreto por tantos anos que meu visual cotidiano remete a ele.
Certa vez estava num evento, ao lado de um palco, aguardando o momento de entrar para mais uma apresentação teatral e um garoto veio até mim. Meu visual pirata ia além da bandana do dia a dia. Trajava o figurino completo, incluindo as espadas. O garoto parou ao meu lado e perguntou:

– Você é um pirata de verdade?
– Sim – respondi, depois de alguns segundos. Percebendo a dúvida no olhar do menino, completei: – Se a verdade for o que eu quiser que ela seja.
– Ah! Assim não vale. Isso é trapaça! – a criança falou, um pouco indignada.
– É o que nós, piratas, fazemos – falei, sorrindo.
 A criança sorriu também.


*

O garoto assistiu a apresentação. Pude ver sua admiração, em diversos momentos, estampada no rosto. Imaginei que ele viria me cumprimentar no final e dizer que queria saber mais sobre o pirata. Não veio, no entanto.
Para o garoto tinha bastado, provavelmente, e havia sido apenas uma apresentação teatral; fantástica, mas irreal de um personagem de um livro. Uma mente tão jovem não poderia compreender a verdade.
Aprendi a olhar através do tempo para possíveis futuros. Um deles me chamou a atenção, em especial, e era sobre ele que eu escrevia. Certamente é apenas um futuro, de muitos. Nem por isso é menos real. Independentemente disso, o que importa é o que a aventura nos conta. Como diria o pirata Ônix: “O bom da mentira é nos fazer sentir algo de verdade”.
Se você estiver disposto apenas a considerar a possibilidade, lhe convido a embarcar neste navio e tirar as próprias conclusões.


*
Imagine o futuro. Mas, imagine o futuro como o passado. Ou melhor; imagine um futuro no qual a tecnologia moderna foi abandonada por ter se tornado tão perigosa a ponto de quase ter destruído a humanidade. Para sobreviver, os remanescentes resolveram seguir um modelo de vida mais simples, inspirados na antiga era medieval. Visando, porém, impedir que as desavenças do passado não fossem herdadas pelas novas gerações, toda a história da humanidade, até então, deveria ser esquecida.
O modelo de sociedade ficou. A história do passado foi enterrada, juntamente com os vestígios da era tecnológica. Uma era neo-medieval teve início e, alguns séculos depois, os piratas começaram a surgir.  

Nesse futuro, um garoto foi levado até as raras relíquias do passado esquecido; que nada mais eram do que livros e filmes, preservadas por aqueles que conheciam a verdade oculta. Havia um aparelho que se alimentava de energia do Sol e, através dele, o tal garoto pôde se deslumbrar com muitas aventuras. E, por acreditar que todas elas realmente aconteceram, e que todos aqueles personagens realizaram tantos feitos maravilhosos, ele acreditou que nada era impossível.
 Inspirado em heróis do velho tempo, o menino cresceu e se tornou o pirata Ônix Pedra Negra, para viver a própria aventura, repleta de mistérios e um tiro na perna.

*
 ˜ Ÿ ˜

 Capítulo I - O pedido

Para quem conseguia saltar de alturas absurdas e executar pirueta no ar a partir de impulso próprio, o esforço para simplesmente andar era mais do que um esforço físico. Era angustiante. 
O pirata Ônix Pedra-Negra estava enfiado debaixo de uma capa com capuz de couro velho. A razão disso não era a chuva fina que caía. Ele andava com dificuldade, disfarçada na lentidão. Havia levado um tiro na coxa esquerda, fazia semanas. A bala feriu a carne e resvalou num dos lados do fêmur. O capuz ajudava a mantê-lo escondido e fora de lutas que não poderia vencer naquele estado. Se conseguisse passar despercebido por pelo menos mais uma semana, teria mais chances de sobreviver para realizar o seu grande plano, bolado com extrema ousadia. É sempre um “se” que faz toda a diferença.
  
Ônix olhou ao redor e viu uma movimentação típica daquela época do ano na região. Pouca gente. Lojas sem muitos produtos. Era o terceiro mês do ano 522 do Novo Tempo.
Ônix mirou uma construção destruída e foi naquela direção. Sentia cada passo. O esforço fazia a perna ferida parecer em chamas. O corpo todo esquentou. Entre as paredes destruídas, repletas de buracos, em meio ao mato que crescia no que antes foi uma casa enorme, ele jogou o capuz para trás e mirou o céu nublado. O telhado não estava destruído. Simplesmente não havia mais telhado.

A chuva fina molhou seu rosto. O calor do esforço foi aplacado. Sentiu o vento frio. Adorava água fria. Despertava seus sentidos. Sorriu. Escutava as gotas que se formavam no mato pingando na terra. O sorriso desapareceu, no entanto, ao ouvir passos atrás dele.
Estivera sendo seguido e não percebera. O ferimento era uma praga maior do que imaginou. Manter o movimento da forma mais natural possível, para não evidenciar estar ferido, lhe exigia toda a sua atenção. Essa era sua única vantagem e teria de bastar naquela situação.
 Se alguém o procurava, sabia de suas perícias elevadas de combate. A reputação era sua única defesa. Muitas vezes venceu lutas sem precisar lutar. Embora, nessas vezes, ele poderia ter lutado, se preciso fosse. Não era, definitivamente, o caso naquele momento.

– Olá – a agradável voz feminina saudou atrás dele.
Ônix se virou, lentamente. Sentia dor, mas colocou um sorriso jovial no rosto. Se fosse uma oponente, não devia notar nele qualquer sinal de insegurança. Se não fosse uma, também.
– Olá – Ônix respondeu.
– Não se lembra de mim, não é? – Ela apertou os lábios, esticando o sorriso, enquanto erguia as sobrancelhas. Era uma mulher de cabelos escuros, debaixo de uma touca de pano, feito as de empregadas. O vestido era simples, mas limpo. As mãos dela estavam para trás. Ônix não se lembrava dela.
– Claro que lembro – ele disse.
– Sou a Éfyn – ela, evidentemente, notara a mentira descarada do pirata. O nome não ajudou. 
– Claro que é – ele insistiu, sem ter ideia de quem poderia ser.
– Daquela noite na tenda escura – ela foi mais específica.
– Ah! – o rosto do pirata iluminou-se com a lembrança e a surpresa. Finalmente sabia quem era. – Isso foi há bastante tempo!
– Quase oito anos – ela confirmou. Colocou uma mecha fugitiva de cabelo atrás da orelha e sorriu. Tinha charme e o pirata notou.
– Bem; tenho os próximos dias livres por causa de umas férias forçadas; veja que sorte. – Ônix deu um passo lento na direção dela. A velocidade reduzida era tanto para não demonstrar anseio em estar perto dela, o que sempre mantinha a coisa interessante, quanto para que ela não notasse seu ferimento. – Somos crescidos agora. Não precisamos mais de tendas escondidas nas sombras.
– Não posso – ela falou. Havia algumas notas de pesar em sua voz. De trás dela saiu um menino, magrinho, de cabelos negros e encaracolados, na falta de um corte recente. A criança pegou a mão da mulher e olhou para o pirata por um breve instante, antes de mirar o chão.
– Ó, entendo – disse Ônix. Abaixou-se, ajoelhando e apoiando na perna boa. Arrependeu-se da ousadia. O mero dobrar da perna machucada o fez sentir novamente o fogo interno na ferida. Para disfarçar o desconforto, perguntou: – É seu filho?
– Sim.
– E quantos anos ele tem? – perguntou o pirata, sorrindo.
– Quase oito – ela respondeu, soerguendo as sobrancelhas e esticando os lábios num sorriso um tanto desconcertante. O pirata se levantou. A expressão era séria. Dor e suspeita. A chuva fina deixou de cair, como se o céu parasse para observar aquela cena com mais atenção. Ônix mirou Éfyn nos olhos e balançou a cabeça em negativa. A mulher balançou a cabeça em afirmação, de forma bem discreta. O pirata fez uma careta.

– Preciso que cuide dele por mim, por uns dias – Éfyn foi objetiva.
– É que estarei muito ocupado nos dias seguintes, veja que falta de sorte. – Ônix falou, recuando ante o impacto das palavras da mulher. A criança apertou a mão da mãe, olhando para o lado oposto. Éfyn colocou a mão livre na cintura e esboçou uma cara de fúria. Ônix entendeu o recado e coçou a barba de seu cavanhaque, pensativo. Voltou a se aproximar. Mantendo a careta, disse diretamente para a criança: – Mas, talvez, eu possa ficar de olho em você um tempinho... dias... apenas... e como amigo, tudo bem?
– Tudo bem. Só namoro meninas mesmo – o menino falou, sacudindo os ombros e segurando um riso.
– Dinho! – a mãe levou a mão esquerda para tampar o rosto.
– Que foi? Papo estranho do moço. Eu hein!... – ele riu para a mãe e depois olhou, sério, para o pirata.
– Ah! Ele tem senso de humor... – Ônix disse. Não podia deixar de admirar a ousadia da criança.
– Ele puxou o pai – disse Éfyn, categórica. Antes que Ônix pudesse dizer algo, o menino perguntou para a mãe, embora olhasse para o pirata:
– É ele não é? Ele vai brincar de faz de contas comigo, não vai?
– Não, não é – Ônix disse. – Não, não vai.
– Vai sim, querido – Éfyn se ajoelhou diante do filho, segurando seu rosto com as duas mãos. – Seu pai só está assustado agora. Ele adora fazer de conta. Olha bem pra ele. Está fazendo de conta ser um pirata, como se fosse o outro de verdade, daquela história que ele me contou, e que eu te contei, lembra? Ele faz isso para realizar algo no qual ele acredita muito...
– Algo que nada tem de faz de conta – Ônix falou ao menino. – E é muito perigoso para você saber mais do que já sabe...
– Aquela história do passado-esquecido, das moedas amaldiçoadas? – Dinho perguntou, mais para mostrar saber do segredo do pirata do que para confirmar.
–... Que pelo visto é mais do que deveria – Ônix completou, torcendo um dos cantos dos lábios e olhando com evidente descontentamento para Éfyn. A mulher deu de ombros e olhou novamente para o filho diante dela.
– Sim, querido. Aquela história secreta – falou.
– Não devia ter contado a ele – o pirata insistiu, quando a mulher se levantou e o encarou.
– E você não devia ter me contado, pelo que sei – ela se defendeu, sorrindo. – Mas não podia deixar de se gabar por ser, nesse Novo Tempo, um dos poucos a saberem sobre fatos do passado-esquecido; não é mesmo? – Ônix mal conseguiu esboçar uma resposta e a mulher já emendou: – Só preciso que cuide dele por alguns dias. Sete dias. É tudo o que lhe peço.
– É um bastante tudo – disse o pirata. Olhou para a mulher e viu o desespero escondido no semblante alegre que insistia em manter. Ela tinha suas razões e não o procuraria, com tanto empenho, nessa altura da vida, se não fosse vital. Por isso, falou: – Mas, tudo bem. Venha buscá-lo no final do sétimo dia e nenhum a mais.
– Não preciso dele! Sei me virar – Dinho falou, cruzando os braços, emburrado.
– Não consigo imaginar alguém que o protegeria melhor do que você – Éfyn disse com sinceridade. Ônix colocou a mão na perna ferida e abriu a boca para dizer algo, mas a mulher o interrompeu: – Só assim terei paz para fazer o que preciso e é algo muito importante para mim. Ninguém melhor do que você, também, para entender isso.
O pirata pensou por um instante e entendeu que Éfyn precisava não se preocupar com o menino para poder se preocupar, plenamente, com outro assunto e, muito a contragosto, respondeu:
–Tudo bem. Vá logo, mulher, pois quanto antes for, antes voltará.
– Ótimo – a criança soltou o ar dramaticamente, quando sua mãe o abraçou forte. – Agora estou preso a um pai que nunca se importou comigo até hoje.
– E que continuaria a não se importar se fosse mesmo seu pai; o que não é o caso – Ônix não hesitou em dizer.
– Agradeço de coração – falou a mulher. Aproximou-se do pirata e o beijou de leve nos lábios. Antes de se afastar dos dois e disse: – Tenha paciência com ele.
– Vou tentar – o pirata e a criança responderam em uníssono e se entreolharam com as testas franzidas. A mulher sorriu e se foi.
– Por que beijou minha mãe? – a criança perguntou, ainda estática.
– Ela me beijou – Ônix respondeu, igualmente parado. Pareciam dois adversários prestes a combater.
– Foi assim que fui feito? – o menino perguntou.
– Mais ou menos... é que... – o pirata piscou algumas vezes. Ergueu as mãos para demonstrar. Juntou as pontas dos cinco dedos de cada mão e fez os dez dedos se tocarem, como se estivessem embolando um papelzinho, numa tentativa de simular um beijo. – O casal se beija assim e... – Uma das mãos desceu até a base da palma, próximo ao pulso, e as pontas dos dedos-boca roçaram ali antes de voltar para tocar as pontas dos dedos da mão oposta novamente. Mão esta que, por sua vez, também desceu até a base da outra e repetiu os mesmos movimentos da parceira, em retribuição. A criança fez uma careta. O pirata inverteu as mãos de forma que ambas as pontas dos dedos, tocassem as bases uma da outra, simulando beijos simultâneos nestas partes inferiores, por algum tempo, antes de voltarem à posição original, com todas as pontas dos dedos se tocando. Desta vez, porém, o pirata começou a bater as bases das mãos uma na outra, cada vez mais rápido. O menino ficou petrificado em sua posição de descontentamento. O pirata julgou melhor terminar sua aula. Colocou as mãos na cintura, e disse: ­– Acho quer foi assim, provavelmente... Entendeu?

– Estou brincando – o menino falou e riu, olhando para o lado, como se contemplasse décadas de experiências que não tinha. – Sei como as crianças são feitas. Sorte minha.
– Ótimo – o pirata disse. – Mas, isso é assunto de adultos.
– Pra falar disso eu preciso ser adulterado?
– Bem isso.
– Eu vou ser parecido com você quando eu for adulto?
– Não, não vai, porque não é meu filho.
– Mas eu posso ter... como chama estes pêlos ao redor da sua boca?
– Cavanhaque.
– Posso ter um cavanhaque quando eu crescer?
– Acho que sim.
– Mas eu queria um agora.
– Só se fosse feito com tinta.
– Você faz um cavanhaque com tinta pra mim?
– Vamos combinar uma coisa? – o pirata perguntou, apoiado na perna boa. – Você tenta me irritar o mínimo possível e, se for o suficiente, pinto um cavanhaque no último dia que passará comigo, se eu estiver de bom humor; o que é bem provável, pois você estará indo embora. Precisa se esforçar para me obedecer. Não tente me ludibriar.
– O que é ludibriar?
– Sabe como as crianças são feitas e não sabe o que é ludibriar? – o pirata riu.  
– Ainda estou aprendendo muita coisa. Mas você é adulto com cavanhaque e não sabe o que é ser pai!
– O que foi que combinamos? – O pirata levantou o dedo indicador para o menino.
– Cavanhaque... cavanhaque... – o menino disse pra si mesmo, passando a mão ao redor da boca.
– Mui bien – Ônix falou. Voltou a ficar ereto e concluiu: – Talvez tenhamos uma chance de passar por isso sem muitos traumas, para mim, é claro.
Enquanto andavam, sem pressa, Ônix colocou o capuz novamente e perguntou ao menino:
– Dinho é diminutivo de quê?
– Não é diminutivo. É aumentativo. De muito carinho, minha mãe disse. Ela me chamava de “meu miudinho” e aí virou Dinho. Meu nome de verdade é...
– Não importa. Não vou te dizer o meu e Dinho serve para mim.
– William.
– O quê? – o pirata perguntou, milésimos de segundos antes de deduzir e a criança confirmou.
– É o seu nome. Minha mãe contou.
– E você não vai contar para ninguém.
– Tá bom. Mas isso deve contar a meu favor no dia do cavanhaque.
– O dia em que me livrarei de você.
– E eu de você.
– Um dia destinado a ser danado de bom, para nós dois.
Dias depois, Ônix se arrependeria destas palavras.

*
     
A vida é feita de momentos alegres e tristes que se alternam como lados de uma bandeira ao vento. O que pensamos quando os momentos de alegria estão escorrendo entre nossos dedos é: será que sobreviverei para ver outro...
Fazia dias que Dinho estava sob a guarda do pirata Pedra-Negra e o momento de despedida seria um tanto quanto antes do esperado para ambos. 
A mão esquerda de Ônix estava pingando sangue que escorria entre seus dedos. Havia uma espada na destra. Ele lutava com um oponente envolto em panos negros, protegendo o assustado menino caído aos seus pés. Um dos marujos de Pedra-Negra, ao fundo, enfrentava outro oponente coberto por panos negros.
O navio balançava naquele início de noite e era possível escutar as ondas se chocando contra rochedos ao longe, enquanto espadas se chocavam à bordo do Camaleão, o navio de Pedra-negra.   
Ônix foi desarmado e chutou o adversário para longe. O esforço o fez cair ao lado da criança. Dinho tinha o rosto pintado. O cavanhaque tão desejado, iluminado pelas tochas ao redor. A criança olhou para o pirata e se levantou com uma espada de madeira em mãos. Ônix tentou segurá-lo. Não o alcançou em tempo. Colocou a mão na perna onde havia levado o tiro e fez uma careta.
Dinho atacou o adversário adulto envolto em panos negros, vez após outra. O homem se esquivou de todas, sem dificuldades.
Éfyn subiu a rampa de madeira com o coração apertado. Escutava gritos de combate e via fumaças subindo ao céu negro. Quando viu, da entrada do navio de Ônix, seu filho atacando, com uma pequena espada de madeira, um adulto com uma espada de metal, colocou a mão na boca para não gritar. O grito poderia ter distraído o pequeno e ser fatal; embora não fizesse diferença, no fim das contas.
O adversário do menino finalmente atacou.

Num instante, o metal da espada brilhou na direção de Dinho e ele posicionou sua espada de madeira para se defender. No instante seguinte, a madeira, partida em duas, estava caindo e o menino também.
A mulher não pôde conter o grito. Ônix olhou para ela. Dinho, jogado no convés, olhou para ela. O homem envolto em panos pretos não. Ele estava ocupado erguendo sua espada para mergulhá-la de ponta sobre o menino.
Uma nuvem avançou sobre a lua. O Homem avançou sobre o menino.

E, em alguns casos, a pergunta não é se vamos sobreviver aos momentos tristes e sim se vamos querer...

*
Capítulo II - Moedas

O menino estava diante do imenso homem e teria de lutar por conta própria. Eles estavam no convés principal do navio batizado de Camaleão. O sol brilhava no alto.  
O menino era chamado de Dinho, embora não fosse seu nome verdadeiro, e o homem diante dele era chamado de Perrengue, e também não era seu real nome. O que esperava? Estavam num navio pirata. Um lugar de mentiras e trapaças. Nomes reais ficavam de fora. Não era um lugar nada aconselhável para uma criança, muitos diriam. O menino estava adorando, no entanto, essa é que era a verdade; se é que mencionar alguma, alivia sua idéia sobre aquele lugar de tantas falcatruas.
 – Vamos ver o que seu pai te ensinou nestes quatro dias – o marujo disse. Tinha a cara fechada. Apenas muito fechada. A criança o deixava de bom humor. Quem o via com Dinho, custava acreditar que era aquele Perrengue amargo e agressivo de sempre.
– Bem, a primeira coisa que ele me ensinou foi a não chamá-lo de pai – disse o menino, erguendo as sobrancelhas.
– Vamos ver se será a última – o marujo falou, apontando a espada de madeira em sua mão, desafiador. A cara, sempre fechada, foi contorcida mais um pouco, de forma bastante ameaçadora.
– Você não vai me matar de verdade, né? – o menino perguntou, um tanto incerto.
– Não vou te matar com uma espada de madeira.
– Nem como uma de verdade, né?
– Isso é um treino – o marujo disse, tentando desfazer a cara de mau. O esforço piorava a coisa.
– Tá bom – o menino resolveu acreditar. Escolheu suas armas: um bastão e um nunchaku. O segundo foi pendurado no pano amarrado na cintura. Era uma garantia extra.
 – Então, vou te mostrar como sou forte!
– Você pode dizer; mostrar é outra história – Perrengue bufou.
– E será uma triste história... para você – o menino falou, com a voz tão carregada que Perrengue teria rido, se lembrasse como fazer isso. Dinho girou o bastão algumas vezes antes de parar em posição de combate.
– Boa provocação – Perrengue admitiu, firmando sua expressão de poucos amigos.
– Meu pai... – o menino começou a dizer, mas, como um ator que erra a fala, retomou, ainda na postura preparada: – Ônix me ensinou que uma boa provocação mostra coragem e coragem imitida o oponente.
– Intimida...
– É.
– Vamos ver se luta melhor do que fala! – Perrengue avançou.

O Marujo atacou algumas vezes. Certamente sem muito peso e sem velocidade significativa. O menino bloqueou todos os ataques com o bastão de forma bastante eficiente. Se livrou da lâmina de madeira, jogando-a de lado e acertou a canela de Perrengue com força.
Dinho riu com vontade, se divertindo. A expressão do marujo  era assustadora, mas ele não gritou. Parecia mastigar a dor que logo engoliu. O menino atacou várias vezes, misturando os malabarismos ensinados por Ônix. Nenhum ataque atingiu Perrengue. O último foi bloqueado pela espada de madeira do marujo antes que sua outra mão segurasse firme o bastão e erguesse o menino do chão, enquanto girava o corpo e lançava a criança longe, do outro lado do convés.
 Perrengue jogou o bastão para trás, para ter certeza de que o menino não o pegaria. Dinho, no entanto, levantou rapidamente, sacando o nunchaku. Começou a girá-lo, mantendo o marujo afastado. Perrengue buscava uma brecha. Não via. Teria de aceitar algum golpe para alcançar o menino e desarmá-lo. Mais alguma dor, ele pensou. Enquanto pensava, o menino iniciou ataques dos quais Perrengue se desviou por pouco. Logo precisou bloquear com a espada. Os ataques, porém, não visavam acertá-lo e sim laçar a espada que foi  roubada num único puxão, quando a corrente se enrolou nela.
Uma vez desarmado, o marujo deu um passo na direção do menino para agarrá-lo e acabar com a brincadeira. Não estava lutando a sério mas Dinho estava. Em estado de alerta total, o menino aproveitou a passada do marujo para girar e bater forte em seu tornozelo, antes que tocasse a madeira do convés. Foi um golpe forte e certeiro a ponto de desviar a perna, que estava no ar, para dentro.
O homem tombava ante a criança. O osso saliente do tornozelo doía numa crescente aguda.  Antes, porém, que o grande corpo se esparramasse no convés, foi atingido por um segundo golpe, vindo de um novo giro completo das correntes. Uma das barras de metal da arma atingiu com força as costelas de Perrengue.

O marujo estava caído. A criança girou o nunchaku algumas vezes antes de parar em posição soberba e dizer, rindo:
– Viu só. Derrotado com a força do Donatello e do Michelangelo.
– E quem seriam esses? – o marujo perguntou, levantando. Esforçava-se para fingir não sentir as dores que sentia.
– Não são mais. Já foram – o menino falou. Jogou o nunchaku num canto do navio, antes de continuar: – Pelo que meu... pelo que Ônix me contou, eram artistas da renasçança. Por isso eles morreram e renasceram, acho, mas voltaram como tartarugas quase humanas que sabiam lutar muuuiiito bem.
– Ele devia estar apenas brincando com você – Perrengue falou. – Às vezes ele exagera...
– Sim – a voz de Ônix foi ouvida atrás de Perrengue. – Às vezes ele exagera e aceita marujos que duvidam de suas palavras. Por sorte, as palavras não foram pra você e sim para o moleque; que devia aprender a guardar segredo.
– Por quê? – o menino pergunta.
– Não esconderam o passado da humanidade sem um propósito e tudo o que ameaçar esse propósito é uma ameaça para este Novo Tempo – Ônix explicou para o menino e depois para si mesmo: – Tenho de me esforçar mais para não dividir palavras sobre o passado esquecido.
– Como se alguém fosse acreditar no que você conta – o menino deu de ombros.
– Mas, se não devo dividir as histórias do passado esquecido do Velho Tempo, devo dividir isso – Ônix falou, tirando um saquinho de veludo da cintura. – O tesouro conquistado naquela operação de ontem foi surpreendentemente farto, para uma operação tão simples. Tirada a parte de manutenção do navio e armas, restou uma moeda de ouro para cada tripulante, que inclui vocês dois.
– Eu vou ganhar uma moeda?! – o menino arregalou os olhos e deixou a boca aberta.
– Você estava no navio durante a operação, não estava? – Ônix foi retórico mas, como a criança não sabia nada sobre retóricas, respondeu, eufórico:
– Sim, sim! Puxei um trilhão de quilômetros de corda pra lá e pra cá e vigiei!
– Então é justo que receba sua parte – Ônix declarou. – Um primeiro e último pagamento, pois nunca mais o levarei noutra aventura desta. É perigoso demais e sua mãe me mataria se alguém te matasse. E não queremos isso. Tivemos sorte. Não foi necessário lutar, como imaginei que não seria.
A perna esquerda de Ônix ainda estava ferida e, embora o esforço para não mancar fosse menor, ainda existia. Arriscou a operação por apostar no medo dos homens naquele navio da realeza.
– Não é amaldiçoada como daquela história daquele pirata do passado-esquecido, ou é? – o menino perguntou, pra ter certeza.
– Se você continuar falando sobre o passado-esquecido, vai trazer problemas grandes para todos nós – Ônix falou. O menino continuou esperando a resposta e Pedra-negra se deu por vencido: – Não é amaldiçoada.
– Ela vai pra caixinha – disse o menino ao pegar a moeda, feliz da vida. – Vai sim!
– Muito bem – Ônix falou. Entregou a moeda de Perrengue e jogou uma, destinada a si mesmo, para o alto e a agarrou. Voltou-se para o menino e deu um conselho: – Guarde sua moeda com sabedoria. Não seja tolo e não a perca em apostas.
– O que me lembra, capitão... – Perrengue pigarreou.
– Lembra o quê? – Ônix se fez de desentendido.
– Que você me deve uma moeda de ouro por aquela aposta – Perrengue falou, mirando o capitão. Parecia um leão de olho num coelho prestes a fugir.
– O tooolo número um! – Dinho cantarolou e se afastou um pouco. Buscava uma caixinha que estava num canto, enquanto estalava a língua em sinal de desaprovação.

Ônix fez uma careta e olhou da sua moeda para a cara de Perrengue. O marujo tinha um olhar implacável. O capitão, porém, guardou a moeda no saquinho de veludo e foi até a criança, fascinada com a primeira moeda de ouro conquistada por seu trabalho no mar.
– Você acredita mesmo ser meu filho? – o pirata perguntou, ao se ajoelhar vagarosamente ao lado do menino. A perna ainda queimava e limitava seus movimentos.
– Minha mãe não mente – O menino respondeu sem hesitar. O mais firme que uma voz de quase oito anos poderia ser.
– Pois há uma tradição no mar e ela diz que todo filho deve, uma vez na vida, dar uma moeda de ouro para seu pai, para receber proteção das águas. Talvez esta seja a sua única chance de cumpri-la – disse Ônix. O menino fez uma careta e olhou para a moeda. O pirata continuou, testando o garoto: – Veja o seu brilho. Uma moeda de ouro. Uma certeza de que, se precisasse, poderia usá-la para confortos físicos por um bom tempo... comida... roupas... diversão... mas, se acredita mesmo que sou seu pai, vai escolher o conforto da alma.
– Existe mesmo essa tradição? – Dinho perguntou, amargurado. E Perrengue tentou responder:
– Bom, parece que agora...
–  ... e sempre, foi assim! – Ônix cortou o marujo. Perrengue se afastou, incomodado. O capitão continuou: – Existe, existiu e continuará a existir...

Dinho olhou para a moeda e para Ônix algumas vezes. Por fim, entregou o pagamento e, amuado, ficou mexendo na caixinha para onde a moeda não foi. 
Ônix sorriu, triunfante. Foi até Perrengue, já bastante afastado, e quase sussurrou;
– Pode não ser meu filho, como sei que não é, mas, já que ficará aqui mais uns dias, é bom que me obedeça e quanto menos dinheiro, menos independência.
O capitão entregou a moeda conquistada ao marujo, para saldar a dívida. Perrengue, no entanto, não parecia satisfeito e foi obrigado a dizer:
– Neste ponto eu queria te ajudar, capitão. Mas, dívida é dívida...
O marujo chamou o menino. Dinho veio saltitando. Ônix estranhou. Perrengue entregou a ele a moeda de ouro, recém recebida do capitão.
– Obrigado, homem de palavra – o menino disse, aliviado. – Achei que teria de lhe cobrar.
– Ah! Não. Acho muito feio esquecer que tem uma dívida – Perrengue disse, olhando momentaneamente para o capitão, que intensificou a careta já existente.
– Você perdeu uma moeda de ouro numa aposta com ele? – Ônix perguntou para ter certeza do óbvio.
 – O tooolo número dois – Dinho cantarolou, voltando para a caixinha deixada lá atrás. Não lhe interessava a reposta de Perrengue ao capitão:
– Na verdade não perdi uma moeda na aposta, capitão...
– Quantas?
– Cinco. E só devo mais uma – ele confessou. Ônix arregalou os olhos. Perrengue se justificou, apontando o nunchaku caído: – O menino me derrubou com essa merda de arma louca!
Do outro lado do convés, Dinho abriu a caixinha, onde já havia outras três moedas para recepcionar a nova.
– Então, neste caso, você ficará com o título de tolo número um – Ônix falou.
– Ah! Quê isso, você não se contentaria em ser o segundo lugar em algo – disse Perrengue, tentando parecer camarada.
– Não posso ser o melhor em tudo – Ônix sacudiu os ombros, como se houvesse pesar naquilo.
– Você seria um bom pai – Perrengue arriscou dizer, cruzando os braços. Ambos olhavam a criança feliz.
– Mas não sou.
– Como pode ter tanta certeza? Porque a manipulação sórdida dele só pode ter sido herdada...
– Eu não estive com a mãe dele – Ônix, revelou, após um breve olhar de desprezo para o marujo, que mantinha a audácia na cara. – Eu não encontrei Éfyn, mãe do moleque, como foi combinado. Mandei um amigo dizer que eu não poderia ir. Meu coração já estava comprometido com um amor que estava destinado a não acontecer, tanto quanto o de Éfyn por mim.  Cheguei a pensar em conceder a ela o que eu jamais teria. Não achei justo, porém. Meu amigo, no entanto, se aproveitou da situação. O encontro foi numa tenda escura, num lugar escondido e ele esteve com ela. Descobri quando ela me agradeceu, no dia seguinte. Estava feliz por ter tido um momento comigo, mesmo sabendo que seria a única vez. Não tive coragem de expor a realidade. O sonho de ter me contemplado com seu amor bastou para ela.
– Então sabe quem é o pai.
– Sei.
– E porque não conta agora?
– Primeiro porque ela ficaria arrasada, se sentindo tola...
– E passaria a odiá-lo para todo o sempre... – Perrengue fez questão de dizer.
– Isso também. Mas, principalmente, porque o cara está morto.
– Então por que não conforta o menino fingindo que é o pai dele?
– É o que estou fazendo.
– Mas sempre que pode diz a ele que não é o pai.
– Negar é o que ele e a mãe esperavam que eu fizesse se eu fosse o pai. É um reforço reverso – Ônix falou e foi a vez de Perrengue enrugar a testa, tentando entender a lógica do capitão. Não teve tempo. O menino foi até eles com a caixinha aberta numa das mãos e a moeda nova na outra.
 – Vou colocar esta aqui, junto com as outras, pra ela não se sentir sozinha – Dinho explicou, agachando-se e colocando a caixinha no chão. Depositou a moeda nela, com cuidado. Depois de olhá-las ali dentro por um segundo, disse: – Acho que vou ser um criador de moedas. Elas vão dormir agora. Façam silêncio, por favor – Ele sussurrou. – Principalmente você, pai.
 Ônix se ajoelhou, com cuidado para não comprometer a recuperação da perna ferida, e sussurrou para o menino, inclinando-se na direção dele:
– Vem aqui.
O menino entendeu e aproximou sua orelha da boca de Ônix.
– Eu não sou seu pai, moleque! – o pirata gritou.
– Eu te paguei uma moeda para poder te chamar de pai e ter proteção do mar – o menino falou, ainda com uma expressão de dor. – E não precisa me chamar de moleque. Pode me chamar de Dinho, como já sabe. E claro que é meu pai. Se não fosse, não teria coragem de dizer a uma criança tão bacana quanto eu que ela não tem uma figura paterna para irritar.
Ônix olhou para Perrengue, atrás dele, e sorriu como se dissesse: “O que foi que eu disse sobre a coisa reversa?”. E voltou-se novamente para o menino, dizendo:
– Se você fosse bacana, devolveria minha moeda, já que tem tantas.
– É minha agora. Estou criando elas – o menino falou, sem lamentar. ­– Já dei nome a ela. Se chama Dora e o sobrenome é Dinha.
– E todas não poderiam ter este nome? – o pirata perguntou, sorrindo discretamente do raciocínio do menino.
– Até poderiam mas, esta aqui, por exemplo – Dinho falou, ao pegar outra. –, tem outras razões para ter outro nome. Tem muitos arranhões e deve ter sofrido muuuuito para estar aqui agora, em segurança.
– E como vai chamá-la?
– Vou chamá-la de Dinho – O menino respondeu, um pouco triste.
– Mas... – Ônix ia dizer algo. Desistiu, porém. Na garganta surgiu um nó.
– O quê? – O menino perguntou com certa urgência, já preparado para defender sua cria.
– Nada – foi o que Ônix conseguiu dizer. Olhou para a cara de Perrengue, mais contorcida do que o de costume, e novamente para o menino, que estava cobrindo as moedas com um paninho. Até aquele momento não havia parado para pensar em como foi a vida da criança até aquele dia, sem um pai para ajudá-los naquele mundo, quando já era difícil o suficiente havendo um.  
Ônix não se levantou e saiu dali, como planejou. Acabou dizendo:
– Bom, agora tenho de revelar que a tradição tem uma segunda parte. Ela diz que um pai também deve dar uma moeda de ouro para um filho, uma vez na vida, e... já que eu não tenho um filho, podemos fazer de conta que é você. Só agora. O que me diz?
– Adooooro faz de contas. E este estaria danado de bom pra mim. – Pegou a moeda, retirada do saquinho de veludo do pirata, com brilho nos olhos. O pesar desaparecendo magicamente.
– Ahá! Então admite que não é meu filho, já que aceita fazer de conta que é – O pirata falou, para se desvencilhar, de vez, da vontade secreta de abraçar o menino.
– Estou fazendo de conta que aceito que não é – o menino riu da inocência do pirata.

Ônix sentiu a perna ferida e se levantou. O menino fechou as moedas na caixinha e foi para a cabine do capitão. Pedra-Negra viu a cara de compaixão de seu marujo, ao menos o mais próximo disso que Perrengue conseguia expressar.
– Se for falar besteira é melhor ficar calado – Ônix avisou. – Não vai querer testar meu humor. Tenho uma responsabilidade inesperada aqui. E o inesperado é perigoso e perigo é tudo o que preciso manter longe desse menino. A mãe não o deixaria aqui se não precisasse. Ele deve estar sendo procurado por alguém e por algum motivo. O motivo que deve estar ocupando a mãe. Se ela não tiver êxito, o perigo pode vir atrás dele. Eu daria minha vida para protegê-lo... é tudo o que precisa ser dito. Espero que isso explique meu mal humor.
O capitão deixou Perrengue sozinho, imerso em lembranças nada agradáveis de sua própria vida. E se pegou pensando que também daria sua vida para salvar o menino, se fosse preciso. Queria acreditar que o tempo de errar havia ficado para trás. O futuro, porém, já está escrito; é o que dizem, e não pode ser mudado. 
   
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Os momentos alegres e tristes da vida são como luz e sombra. Deles, resultam as mais valiosas obras de arte.  O que aprendemos com elas, pode nos marcar profundamente, pelo resto da vida, se tivermos coragem de olhar...
 O olhar de Ônix saltou de Éfyn e voltou-se para Dinho, caído sob a lâmina que descia sobre ele. Não o alcançaria a tempo. Não tinha uma espada ou qualquer outra coisa para arremessar. Tinha sido desarmado.
O navio balançava, mesmo atracado, e as tochas, balançando ao vento, ampliavam a dança das sombras no convés. Num momento de luz, porém, foi possível ver o rosto do menino.
 Dinho olhava para a mãe quando o imenso homem desceu a lâmina sobre ele. Os panos negros, feito asas de uma ave de rapina a cobrir sua presa, envolveram o menino. Ele não gritou. O Homem ficou estático por um instante.
Ônix deve ter dado um punhal para o filho...” Éfyn pensou. Queria acreditar naquilo. “É agora que o maldito tombará de lado e meu filho vai se levantar... é gora... tem que ser assim...” Éfyn se obrigava a acreditar.
 O homem envolto em panos negros se moveu. Não tombou para um dos lados, em queda. Levantou-se. A espada suja de sangue. O menino quase imóvel. O adversário, cruel, recuou alguns passos. Aguardaria o pirata, se ele tivesse coragem de se levantar.

Ônix abaixou a cabeça. Mirava a mão suja de sangue. Um sangue que não era seu. Com muito esforço voltou a olhar para o menino e se arrastou até ele, enquanto escutava o choro de Éfyn, um pouco abafado pelas mãos que cobriam seu rosto na entrada do navio.
Perrengue arremessou seu oponente a alguns metros na direção de seu companheiro, que aguardava Ônix. O marujo parou ao lado de seu capitão, enquanto o adversário se levantava ao lado daquele que havia atacado Dinho.
 Ônix ergueu um pouco o menino, apoiando suas costas, e logo viu que precisava sustentar a cabeça para que ela não pendesse. Os olhos de Dinho estavam quase cerrados, como se lutasse para não cair num sono de uma noite sem fim. Não era sono, porém; o pirata sabia.
– É apenas uma criança – o capitão disse ao marujo. – Não devia ter deixado enfrentar este combate ao nosso lado.
– Sem ele não estaríamos vivos, capitão... – o marujo disse com convicção.
Éfyn, como se estivesse embriagada, alcançou o filho. Dinho sorriu o máximo que pôde para a mãe e sussurrou:
– Mãe... você veio me buscar... mas, não posso ir agora – e, virando-se para Ônix, continuou: – Até onde eu fui; eu fui... o resto, deixo com vocês... protejam minha mãe...
A pequena mão que se apoiava no próprio peito caiu inerte ao lado do corpo. A mãe gritou, expulsando Ônix.
 O pirata não se permitiu perder tempo. Levantou com visível esforço, mirando os dois homens envoltos em panos pretos. Um deles disse:
 – Não pode se apoiar nesta perna, pelo que vimos. – Apontou para a perna esquerda do pirata.
– Não, não posso. E não preciso – Ônix falou e começou a subir e a subir, como se dobrasse de tamanho e quase o fez, ao ser erguido nos ombros de Perrengue, que se enfiou entre suas pernas, se fazendo de montaria.
O marujo passou para Ônix um elmo metálico em forma de caveira e duas espadas. O marujo sacou outras duas espadas e se puseram a girar as quatro, enquanto se posicionavam para o desfecho daquele duelo. Aquele que havia enfrentado Perrengue chegou a recuar um passo, antes de seu companheiro olhar para trás, encorajando-o a voltar.
 Perrengue, avançou. Ônix estava firme, com as pernas travadas no dorso do marujo. A junção formava um monstro assustador, iluminado pelas tochas tremeluzentes ao seu redor.

Toda luta é para evitar algo. Mesmo que seja uma tentativa de evitar o lamento profundo por algo que não pode ser evitado. Chamam isso de vingança. Mas é uma luta perdida. O lamento é um oponente invisível que não pode ser derrotado com espadas e nem atenuado com nenhuma lâmina.

Para confrontar um lamento, um guerreiro deve usar uma arma tão imaterial quanto seu oponente. Apenas a compreensão pode atenuar as perdas. Essa arma, no entanto, é de difícil manejo e faz dessa luta a mais perigosa. Uma luta que pode matar, um pouco, até mesmo quem continua de pé... e isso pode fazer muita diferença.

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Capítulo III - Triste fim Inevitável

A vida é feita de momentos alegres e tristes que se alternam como lados de uma bandeira ao vento. O que pensamos quando os momentos de alegria estão escorrendo entre nossos dedos é: será que sobreviverei para ver outro...

E, em alguns casos, a pergunta não é se vamos sobreviver aos momentos tristes e sim se vamos querer...

Os momentos alegres e tristes da vida são como luz e sombra. Deles, resultam as mais valiosas obras de arte.  O que aprendemos com elas, pode nos marcar profundamente, pelo resto da vida, se tivermos coragem de olhar...

Os momentos alegres e tristes se encontram, como notas opostas, numa canção que nos toca enquanto a tocamos...
 Não há tempo para novas palavras. As letras das canções já estão escritas antes de sua execução. Como acontecimentos do destino. Há momentos dentro dos momentos, onde sequer cabem palavras. Solos instrumentais. O tilintar do metal de lâminas se chocando.

Ônix estava enfiado debaixo do elmo metálico em forma de caveira, montado nos ombros de Perrengue, seu marujo. Cada qual brandia duas espadas, atacando ferozmente os dois habilidosos adversários envoltos em panos pretos.

O capitão e seu marujo se tornaram uma máquina de guerra e os adversários não encontravam uma brecha para atingi-los. Os movimentos da criatura de quatro braços pareciam ainda mais ágeis, graças ao tremeluzir dos fogos nas tochas a iluminarem o convés do navio.

 Das tochas acesas, exalavam densas fumaças negras que, sopradas pelo vento, transformavam o convés do navio no próprio inferno. E o senhor daquele lugar era o monstro de guerra que desaparecia na fumaça obscura, momentaneamente, apenas para reaparecer, de forma ainda mais assustadora.
Éfyn ainda soluçava a balançava o corpo de Dinho, seu amado filho, caído em seu colo. O desespero era avassalador, a ponto de impedi-la de perceber algo além dele. Todo o resto desaparecia no vazio de seu coração. A dor da perda era cruel demais.

O combate não durou muitos minutos. Um a um, os homens de preto tombaram.

O monstro de quatro braços se dirigiu, lentamente, até a mulher em prantos. Perrengue agachou e Ônix desceu ao solo, retirando o elmo. Sua expressão era de lamento profundo.

Éfyn deitou o corpo do menino no chão, com cuidado, e se levantou em fúria para socar o peito de Ônix, com violência. Ele não se defendeu. Sua careta não era necessariamente de dor. Perrengue, no entanto, segurou a mulher. Desimpedido, o capitão aproximou-se do menino e o ergueu nos braços. Já de pé, disse:
– Agora você terá um enterro digno.
– Não... meu corpo será queimado...  – o menino murmurou, muito baixo, sem abrir os olhos.
– Agora, então, você terá uma fogueira digna, no alto de um penhasco – Ônix falou.
– Não... penhasco não... vou ser queimado num barquinho...  – a voz moribunda do menino corrigiu.
– Barquinho descendo o rio é bacana – Perrengue falou, emburrado, acima do rosto de Éfyn. – Tipo aqueles onde uma flecha em chamas é disparada.
– Flecha é bom, muito bom – Dinho concordou, ainda em voz murmurante e olhos fechados. Sorria, porém, e continuou: – Mas não antes de um último oponente de negro, já caído, se levantar como um zumbi maldito super poderoso...
 Ao ouvir as palavras do menino, um dos homens envoltos em panos negros começou a se levantar, emitindo sons guturais. Parou, no entanto, ao escutar as palavras de Ônix:
– Nada de zumbi. Aí você já está abusando – falou ao menino. E disse, na direção do homem que, além de não mais levantar, caiu novamente: – Detesto zumbis.
Os olhos de Éfyn, ainda nos braços de Perrengue, estavam arregalados. Ela tremeu quando Dinho reclamou, ainda de olhos cerrados:
– Mas é o meu faz de contas e todos concordaram em participar.

Só naquele momento Éfyn lembrou-se do início da semana, quando o menino perguntou se Ônix iria brincar com ele. A própria mulher havia afirmado que o pirata o faria. Seu corpo ficou bambo e teria caído, não estivesse nos braços de Perrengue. Era apenas um faz de contas; ela tinha finalmente entendido.

A vida parece composta por momentos alegres e tristes que se alternam como lados de uma bandeira ao vento. É rápido demais para enxergarmos e facilmente somos enganados. Fica difícil saber quando é um ou outro.

Os momentos alegres e tristes da vida são como luz e sombra. Deles, resultam as mais valiosas obras de arte. Meras ilusões que nos levam a ver o que não existe.

Os momentos alegres e tristes se encontram, como notas opostas, numa canção que nos toca enquanto a tocamos...
 Não há tempo para novas palavras. As letras das canções já estão escritas antes de sua execução.

O que esperava? Estavam num navio pirata. Um lugar de mentiras e trapaças.

– Eu... não... não acredito que me deixaram acreditar nisso – Éfyn falou, perplexa, como se estivesse despertando de um pesadelo. Cobriu o rosto e respirou fundo. Tremia muito. Não era apenas reflexo do desespero de segundos atrás. Era ódio.
– Ué, você não estava atuando também?  – Ônix perguntou, sorrindo. – Achei que estava. Ou que, se achasse que estava perdendo esse menino, iria ficar feliz em levá-lo com você tanto quanto eu ficarei – O pirata falou e jogou Dinho na direção da mulher.
Éfyn mirou, em fúria, o pirata que não se importou se o menino pousaria em pé ou não; o que só fez com a ajuda da mãe.
– Você quase me mata do coração – Éfyn falou, olhando para o menino e, não se contendo. O abraçou forte. Quando tornou a olhá-lo, sua expressão era apenas de alívio. – Ah! Meu filho, nunca estive tão feliz de você estar vivo.
– Ué, porque não? Sou tão legal!  – o menino falou, maroto. A boca emoldurada pelo falso cavanhaque, pintado por Ônix.
– Então você deveria me beijar, por gratidão – Ônix falou. – Por eu lhe proporcionar um momento tão feliz!  
Éfyn estreitou os olhos em resposta e o pirata tratou de mudar de assunto:
– Fez o que tinha de fazer?
– Sim, fiz. Quanto a isso devo lhe agradecer. Acho.
– Pois agora é minha vez de continuar fazendo o que preciso. Já estou pronto para alguma ação de verdade – Ônix falou, girando a perna esquerda para testar se a leve dor ainda era leve, depois de tanto exercício. Éfyn, porém, sequer imaginou que Ônix se referia a algum ferimento recuperado. – Tenho de continuar a minha aventura.
– Eu sei – a mulher falou. Ainda olhava para ele sem acreditar naquela situação. – Seu grande feito. Que vai fazer com que sua história seja tão fantástica como a do pirata do passado esquecido.
– Ou mais...  – Perrengue arriscou. E ficou um pouco encabulado quando todos olharam para ele. Estava passando tempo demais com o capitão a ponto de admirar sua convicção.
– Como se você soubesse algo do passado esquecido – Ônix comentou, embora, no fundo, tenha admirado a admiração do marujo.
– Não, não sei – Perrengue mirou o chão, puto. Não pelo comentário do capitão e sim pelo próprio. Para deixar oo marujo mais tranquilo, Ônix discursou:
– As inspirações são os portos de partida, não os de chegada, e, entre um e outro, há muito mar para enfrentar, com ventos ondas e tempestades diferentes, nos empurrando para todos os lados, tornando qualquer aventura única e, por tanto, diferente de qualquer outra. É isso o que importa.
– Tenho certeza de que conseguirá – Éfyn disse. Pensou por um instante, reconsiderando se entregava ou não um recado de um marujo de Pedra-Negra. Dinho, estava bem. E tinha se divertido. Talvez um dia ela conseguisse rir daquela situação toda e acabou dizendo: – E, como prova de gratidão, trago a informação passada por um de seus marujos. O encontrei ferido mortalmente, não longe daqui. Ele disse que a futura sacerdotisa de Dáverus está na nova igreja do deus, na praça central da capital.
– Sei onde é – Ônix falou. Mirou o vazio por um instante e Perrengue bufou, atrás dele. O Marujo morto era Zig-Zig Subaqueira, um bom camarada. A morte estava sempre atrás deles e ônix já havia sentido seu hálito mais de um vez. – Quase fui enforcado naquela praça, não faz muito tempo.
– Como você consegue viver assim... flertando com a morte? – a mulher perguntou, sacudindo a cabeça, quase arrependida por ter deixado o filho ali.
– E não fazemos isso, todos nós, de uma forma ou de outra? – o pirata perguntou. – Ao acordar a cada novo dia?
– Rezarei por você – Éfyn falou.
– E eu rezarei pra você não rezar; pois não creio em rezas ou deuses – Ônix falou, cruzando os braços.
– Vamos, meu filho – Éfyn pegou a criança pela mão.
– Ora! Não vão ficar para o jantar? – Ônix perguntou, mais afoito do que gostaria. – Ainda temos algumas horas deste dia.
– Tenho que ir, pirata – Dinho falou. – Devia ter aproveitado melhor os momentos comigo.
– E quem disse que não aproveitei? – Ônix perguntou, ao se ajoelhar, quase sorrindo. – E, desistiu de me chamar de pai?
– Você aceita ser meu pai?
– Não, não aceito.
– Imaginei. – O menino espremeu seus lábios um no outro afinando o sorriso.
– Mas posso aceitar que você seja o meu filho.
– E qual a diferença?! – o menino perguntou, erguendo as mãos, exasperado.
– A diferença é que não sou seu pai.
– Foi assim o tempo todo? – Éfyn perguntou para Perrengue.
– Todos os dias – o marujo respondeu.
– Eles chegam a algum lugar?
– Dê mais uns minutos e estarão discutindo a semelhança entre biscoitos de gergelim e estrelas do mar – o marujo deu de ombros.
– Não temos mais alguns minutos. Precisamos ir.
– Ahm... deixe-o apenas se despedir – Perrengue pediu e arriscou, girando Éfyn, ao puxá-la para um canto. – Ônix não tem muitos amigos, além de nós. Aposto que, quando o conheceu, isso era diferente. Ele tinha alguns amigos, imagino. Um mais chegado que os outros... talvez.
– Ônix? Amigos? – Éfyn piscou algumas vezes, sem entender onde Perrengue queria chegar. – Acho que eu fui sua única amiga, se cheguei a tanto, além da outra que era, na verdade, o amor da vida dele. Como eu poderia competir com uma princesa? Por isso, nunca nutri esperanças; além de uma noite. Já que não era seu amor, já me contentei em ser, naquela época, a única amiga que ele tinha.
– Certeza? Ninguém em que ele confiava? – o marujo enrugou a testa, olhando para o capitão, que ainda conversava com o menino.
– Não que eu saiba e creio que saberia – a mulher estranhou, mas, acabou dizendo: – Acredite, Ônix nunca teve tantos amigos quanto tem hoje. Mas esse novo amiguinho precisa ir, para ele seguir em frente.  

Éfyn não esperou ouvir mais nada de Perrengue e se aproximou novamente do filho.
Ônix estalou os dedos e Perrengue pegou para ele um embrulho que estava ali perto.
– Um presente de despedida – Pedra-Negra falou.
– O que é? – o menino perguntou, ansioso
– Uma roupa.
– Roupa? Eu pareço precisar de roupa?! – O menino dramatizou. Esperava brinquedos e isso, para ele, significava armas. – Preciso é de espadas, nunchakus, punhais...
– Esta roupa é um escudo – Ônix falou, bem sério. Era importante o menino escutar com atenção. – Esta foi a primeira roupa pirata que fiz para mim. Acabei nunca usando. No fim escolhi o nome Ônix Pedra-negra e, como verá, esta aí é toda vermelha. Não ia combinar muito. Mas é em couro bem trabalhado e é bem funcional.
– E protege como um escudo? – o menino estava mais interessado.
– Sim – Ônix confirmou. – Principalmente a quem você ama. A bandana desce sobre os olhos, onde há uma espécie de máscara. Você verá seus oponentes, mas eles não verão você. Verão o vermelho da verdadeira justiça. E, sem saberem quem você é, por baixo da máscara, não saberão quem ameaçar para te ferir.
– Ele é só uma criança – Éfyn falou. – Gostaria muito que ele não se tornasse um aventureiro.
– A vida é sempre uma aventura quando se é inteligente o suficiente para contestar o que está errado – Ônix falou. A mulher o mirou com fúria e o pirata completou, de imediato – E só vai servir nele quando crescer o suficiente para fazer as próprias escolhas. 
 – Não sei se gosto de vermelho – o menino comentou.
– Tenho um grande plano – Pedra-Negra falou ao menino. – Se eu falhar, o mundo se tornará um mar de sangue e, com esta roupa, você estará muito bem camuflado. Assim poderá fazer alguma diferença. Espero que este dia nunca chegue e que você possa escolher a própria roupa. 
– Temos de ir – Éfyn falou.
O menino olhou da mãe para o pirata ajoelhado diante dele e perguntou:
– Vou vê-lo novamente?
– Claro que vai! Em seus sonhos...
Ônix abraçou o menino e ele foi levado pela mãe.
O capitão aproximou-se da rampa por onde Éfyn e Dinho desceram. Perrengue parou um pouco atrás dele. Logo a criança e sua mãe estavam no píer e Ônix murmurou, entristecido:
– E eu o verei nos meus...
– Não acha que poderia manter contato? – Perrengue perguntou, parando ao seu lado. Ambos assistiam a mulher e a criança se afastando aos poucos. O menino gesticulando, demasiadamente, enquanto provavelmente resumia tudo o que vivenciou naqueles dias.
– Este triste desfecho era inevitável – Ônix respondeu.
– Você pode saber muito sobre o passado esquecido; e não me interessa como sabe, mas, não sabe como tudo deve ser, neste tempo. Não pode saber sobre o seu futuro. Ou pode?
– Sei o que preciso fazer. E isso não é saber sobre meu futuro? – Ônix argumentou.
– Espero, neste caso, que saiba mais sobre seu futuro do que sobre seu passado.
– O que quer dizer com isso? – o pirata se deu ao trabalho de perguntar.
– Ou não se lembra do seu passado, o que acho pouco provável, ou está mentindo para mim e para si mesmo. Parece não ter havido um amigo que se passou por você na tenda escura, no dia em que o menino foi concebido.
– Falou com Éfyn.
– Sim.
– Não deve acreditar em tudo o que escuta – Ônix alertou.
­– Está se referindo ao que ela disse ou ao que você me disse, capitão?
– As duas coisas. Mas, sobre este assunto, especificamente, saiba que Éfyn não sabe tudo sobre mim, como acredita saber. Você pode acreditar nisso ou não. Um coisa é certa... – Ônix falou, virando-se para o marujo. Perrengue esperou, com atenção, a pausa dramática do capitão, até o superior dizer, displicentemente: – Não me importo. Limpem esta bagunça! Vamos voltar à ação!
– Pôxa, eu já estava cochilando aqui – um marujo resmungou, lá atrás, ainda envolto em panos pretos, deitado no convés.
– Pois é, o calorzinho bom dessas tochas é acolhedor – outro concordou, levantando-se devagar, enquanto se desvencilhava dos tecidos negros para voltar a ser um marujo.
Perrengue se afastou do capitão, sacudindo a cabeça, em desistência forçada, para recolher espadas jogadas ao chão. Ônix voltou a olhar a mulher e o menino desaparecendo ao longe. Bons momentos de alegria se foram. Os próximos dias seriam um tanto mais tristes. Alternância. Assim era a vida. E Pedra-Negra havia escolhido uma na qual esta dança se tornava cada vez mais intensa.

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